Aproveitando o “gancho” do texto anterior, prossigo papeando com quem gosta de assistir telenovela.
Interessante como nesse país se assiste telenovela. Estatísticas comprovam através de diferentes métodos a supremacia da telenovela como o produto de ficção que mais agrada o público. Claro está que falamos do público que admite assistir telenovela, porque, sabemos, há outros tipos de público que não a suporta ou prefere outro tipo de produto cultural.
O que será que tem a telenovela para atrair tanta gente disposta a ver as mazelas do cotidiano reproduzidas em cores híbridas dentro de um mise-en-scène quase sempre repetitivo?
Acho que a resposta pode ser compreendida inicialmente na questão dos espelhos. Quero dizer, no fenômeno da realidade pelo qual opera uma dinâmica intra e interpessoal de introjeção e projeção, como num jogo de espelhos. Olhamos situações conhecidas por nós, mas do ponto de vista quase sempre subjetivo, de nossas impressões a respeito delas.
Quando um autor compreende bem essas situações e as projeta numa ficção de tevê, elas já passaram por um filtro de observação intuitiva no autor, cuja forma é sempre muito reconhecível pelo telespectador devido ao fenômeno da realidade espelhada citada um pouco mais acima. Em outras palavras, tudo aquilo que um autor de telenovela constrói dramaticamente para as situações de sua história tem como reflexo aquilo que o público reconhece como real dentro da própria ação conhecida por nós em nosso dia-a-dia.
Na verdade, tudo aquilo que o público deseja ver já foi visto pelo autor intimamente, pois o jogo de espelhos começa no autor, isto é, ele intui os “porquês” de seus personagens e situações a partir daquilo que ele mesmo refletiu interiormente, projetando, assim, um conjunto de informações que tem plena sintonia com a realidade identificável por um público conhecedor dessa dinâmica de espelhos, cuja origem começa nas impressões de algum dado real, movendo-se para o exterior como que numa concretização de processos da vida.
As tramas da telenovela, que muitos conhecem como plots (enredos), admitem um tipo de linguagem impressivo, digamos assim. Assim como no teatro temos, via de regra, um modo de linguagem expressionista, em que se procura manifestar as emoções dos personagens quase que integralmente dentro de suas ações que incluem suas palavras, na telenovela o modo de linguagem, por assim dizer, é impressionista, isto é, conhecemos os personagens por suas impressões, por suas expectativas, por suas intenções, por seus pensamentos, enfim.
É através dos pensamentos dos diferentes personagens da novela que a trama se forma e enreda os personagens, resultando numa teia de relações dimensionadas em graus e qualidades diversas no que diz respeito à importância e duração dessas relações, erguendo assim um outro patamar de onde se sobressai a intriga.
Se o protagonista gosta da personagem secundária no início da novela, ele vai expressar isso através de suas impressões a respeito dela, e se mais tarde ele conhecer sua outra paixão, a personagem principal com a qual ele fará par na história, o relacionamento anterior perde intensidade, mas poderá se tornar difícil porque os pensamentos mesclados a sentimentos da outra personagem serão projetados no universo do folhetim (a realidade ficcional em foco), abrindo, então, a possibilidade de se trabalhar uma nova teia de situações.
Cabe notar que as impressões dos personagens são expressas e, assim, aparece manifestada uma ordem de sentimentos, intenções (incluindo-se aqui a mentira e a sinceridade de intenções em dadas situações vivenciadas na novela), atitudes e comportamentos que revelam o caráter e papel de cada personagem na trama.
Há autores que começam um projeto de telenovela esboçando os caracteres dos personagens e, a partir disso, os envolvem uns aos outros, formando, assim, uma teia mais ou menos complexa de interesses e necessidades particulares a eles. A esse procedimento costuma-se chamar de elaboração de uma sinopse de telenovela. Um corpo de texto cujo conteúdo deve revelar caracteres, propósitos, ações, sentimentos dos personagens, uns em função dos outros, porque tudo ali deve estar enredado, formando um tecido dramático cuja principal característica é a qualidade das relações entre os principais personagens da história.
Na novela “Celebridade”, de Gilberto Braga, por exemplo, a personagem da atriz Malu Mader já foi noiva do personagem de Thiago Lacerda, mas hoje gosta de um outro e amanhã pode até se casar com outro diferente. Isso tudo pode nem ter sido previsto pelo autor na concepção da sinopse, mas os caracteres e propósitos relativos à personagem de Malu Mader ao longo de suas ações e reações em função das circunstâncias exteriores e da dinâmica de suas relações, compuseram um tecido dramático inicial que, em função também das expectativas e influência direta da audiência, acabaram por gerar aquilo que podemos ver hoje na telinha, em cores reais para a história dessa personagem.
Como dissemos mais acima, um processo interior de criação autoral espelhado em percepções e entendimentos de certas realidades que já foram aceitas internamente é o princípio real daquilo que será visto pelo telespectador posteriormente, o que, em suma, trata-se da projeção operada pelas impressões do autor-roteirista.
Por isso começamos falando do jogo dinâmico que os espelhos das realidades caracterizam. O que nasce com a observação são as próprias impressões e estas sendo observadas externamente reproduzem a identificação que sabemos provocar uma história junto ao público.
É como se pudéssemos ver no espelho da telenovela a essência de nossos pensamentos e sentimentos mais comuns em função da realidade vivida e frente às relações que travamos no cotidiano. E, antes de finalizar, retomando àquela pergunta no começo desse texto: esse processo de vida que conhecemos por nossas vivências cotidianas não é tão repetidamente folhetinesco ao ponto de vermo-nos no espelho da história refletida pela telenovela.
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