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A viagem de DOIS IRMÃOS, da literatura ao audiovisual

por Aleksei Abib

Ao som de gazais, o ano começou diferente na televisão brasileira. Na voz envolvente do mascate Halim, os versos árabes, cheios de erotismo, atingem em cheio o coração da bela libanesa Zana, que logo aceita o irrecusável convite de casamento.  E anuncia: “Eu quero filhos, Halim”. Os filhos logo vieram. Gêmeos. E, com eles, a tragédia.

Esse é o estopim de uma das mais emocionantes e explosivas histórias da literatura brasileira contemporânea, o romance “Dois Irmãos”, escrito pelo amazonense Milton Hatoum, em 2002. Quatorze anos mais tarde, em uma engenhosa e sensível recriação, a autora Maria Camargo transporta a trama para as telas. A minissérie da Tv Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, exibida em janeiro com sucesso de público e crítica, é também um exemplo da importância do autor do roteiro no audiovisual, que a imprensa muitas vezes ignora ou omite.

A seguir, os “Dois Irmãos”, por Maria Camargo



ABRA. Recentemente você declarou que leu o livro mais de 25 vezes no processo de adaptação da obra para a Tv. Mas, e a primeira leitura, como aconteceu? Como tudo começou?

MC. Foi em 2002, e provocou uma virada radical na minha vida – e não só na vida profissional. Na época, já era roteirista há uns 4 anos, contratada pela Tv Globo, mas me sentia desmotivada. Escrevia muito, e cada trabalho foi um bom desafio, mas eu não estava falando de mim. Quando li “Dois Irmãos”, reconheci de cara a qualidade literária e a potencialidade que havia na história para uma recriação audiovisual, mas a coisa foi além: antevi que, através daquela família, podia também acessar minha própria história, falar do que me era mais íntimo, mais profundo.


Daí em diante foram batalhas sucessivas para convencer a Globo a apostar numa minissérie (não rolou); convencer o MiNC a apostar num filme (não rolou), convencer o Milton a acreditar em mim e me vender os direitos do livro – e aí, porque dei sorte de encontrar um autor que, além de genial, era generoso… rolou.

Tentei levantar a produção eu mesma – fui a Manaus, conversei com produtoras e diretores que tinham interesse no projeto. Estava nesse caminho ainda indefinido quando, em 2007, o Luiz Fernando Carvalho me procurou e propôs uma volta à Tv Globo. Topei a proposta, mas a coisa ainda demorou a se concretizar: três anos para começar a escrever o roteiro, que ficou na gaveta por mais quatro até que veio o sinal verde para retomar o trabalho. Escrevi o segundo e o terceiro tratamentos em 2014, e no início de 2015 finalmente começaram as gravações.


ABRA. Uma das maiores escolhas que deve fazer um escritor é que história contar, entre as tantas possíveis no mundo. O que levou a sua escolha de contar a trama de “Dois Irmãos” para a Tv?

MC. Pois então, as escolhas… Por um lado foi uma escolha racional – a história tinha elementos dramáticos, trágicos e míticos raros na dramaturgia audiovisual contemporânea; personagens envolventes, que tinham motivos para ser o que eram. Dois Irmãos era a chance de quebrar o padrão das histórias de gêmeos inimigos, geralmente esquemáticas. Fugia do maniqueísmo também ao colocar em cena uma mãe que erra muito. Não apesar do amor, mas justamente por causa dele.

Havia também o Tempo como um personagem magistral: tempo que passa para os personagens; para a cidade que cresce desordenada e se destrói; para o país que, em nome de uma modernidade duvidosa, segue para o abismo. Tempo que transforma o narrador, um agregado, no porta voz da memória da família – e que narrador! É de Nael a única redenção possível.

A grandeza e a complexidade do romance me encantaram – nunca achei que seria fácil, mas não costumo mesmo gostar de histórias fáceis. Só que aí já estou falando de outra escolha, nada racional, tão visceral que talvez a gente nem possa chamar de escolha.

Me emocionei desde a epígrafe do Drummond até a última linha, senti uma compaixão profunda por todos os personagens. E quis transmitir essa mesma emoção para outras pessoas, para o máximo de pessoas que fosse possível alcançar.


ABRA. No lançamento da série você disse que não é Zana, e nem tem filhos gêmeos, embora se identifique com os dramas da matriarca. Como sua família reagiu a série?

MC. Sempre encarei a Zana como uma heroína trágica, que sofre barbaramente por conta dos próprios erros – erros que ela não consegue evitar, tomada que está por uma emoção incontrolável. A cada tentativa de acertar, ela erra de novo, erra mais. É dilacerante.

Foi bem interessante observar a reação dos espectadores à personagem. No começo, raiva, indignação, repulsa: como Zana era capaz de rejeitar um filho daquela maneira? No fim, isso tudo foi dando lugar à compaixão. Que é o que eu senti – não só por ela, mas por todos os personagens da história. Compaixão.

Meus filhos se comoveram muito, choraram, os adolescentes viram mais de uma vez o último episódio – e não foi pra me agradar! O mais incrível é que essa reação não foi só deles, mas de muitos jovens. O twitter virou uma festa, uma loucura. Isso, sinceramente, eu não imaginava que pudesse acontecer – história trágica, de época, árabes na Amazônia… uma realidade tão diferente da que vive um jovem urbano hoje – mas aconteceu.


o exemplar de Dois Irmãos de Maria Camargo: matéria prima e ferramenta


ABRA. Entre tantas qualidades, “Dois Irmãos” se aventura por uma narrativa não linear, onde presente e memória se alternam, e interferem, um no outro, desde o princípio. Como lidou com isso na transcriação do texto para a Tv? Pode contar um pouco de seu processo de trabalho?

MC. Lidar com o Tempo – assim mesmo, com “T” maiúsculo – foi o maior desafio. A narrativa não linear era parte inseparável da história, fazia parte de sua natureza. No livro funcionava maravilhosamente, mas isso, claro, não era indício de que funcionaria na televisão – muito pelo contrário. Tive que desembaralhar tudo para depois embaralhar de novo, à minha maneira.

Na prática: comprei quilos de fichas, muitas canetas e etiquetas coloridas, e comecei fazendo uma ficha para cada situação ou cena descrita (ou, às vezes, só insinuada) no livro. Foram 565 fichas, que espalhei pelas paredes, janelas e varais improvisados. Olhei pra elas por algum tempo, entendi melhor as idas e vindas, e aí parti para um segundo momento. Fiz novas fichas, com a história agora em ordem cronológica – ou seja, desembaralhei o que o Milton embaralhou. Entendi melhor o que era começo, meio e fim; as balizas dramáticas, as cenas essenciais. Com essas fichas, fiz uma linha do tempo que poderia acessar o tempo todo, e de fato acessei.

Na terceira etapa, a mais longa e trabalhosa, “reembaralhei” as peças, criando uma progressão e um andamento para a minissérie que era diferente do livro, mas mantinha o diálogo com ele. Essas fichas depois foram distribuídas ao longo dos dez capítulos.


ABRA. Em uma adaptação para a Tv, se fala muito em fidelidade a obra original. Como vê essa questão? E como se deu o diálogo com o autor?

MC. Queria ser fiel à natureza da história, mas não necessariamente aos fatos narrados. Mesmo tendo adoração pelo livro, como autora de um outro original eu não podia ser subserviente à literatura. A história do Milton, como ele mesmo disse, foi dar um passeio por outra linguagem, e era a essa outra linguagem que eu tinha que ser fiel.

O próprio Milton, portanto, sempre entendeu isso. Ele é o escritor que todo roteirista pediu a deus, nunca impôs nada nem me colocou limites. Chegou a dizer que Yaqub e Omar não precisavam nem ser gêmeos, se eu preferisse assim!

Ficamos muito amigos ao longo desses 14 anos de estrada, e o sucesso maior para mim foi esse. Tive sorte, muita sorte.


ABRA. Sabemos que muitas vezes não há como transpor tudo o que está no livro para uma obra audiovisual. Há muita inserção de cenas novas no roteiro, para cobrir essas elipses? No final das contas, quanto do roteiro final é recriação? Pode dar algum exemplo?

MC. Creio que esse processo se dá – ou pelo menos se deu comigo em Dois Irmãos – com alguma racionalidade, mas também há muitas escolhas intuitivas.

Apesar do meu amor imenso pelo livro, bastava colocar as fichas na parede, ou tentar “imitar” a literatura, para sentir que, em boa parte das vezes, não funcionava. Nos momentos em que funcionou, mantive como está no livro – por que mudar? Mas em outros, muitos outros, tive que reinventar. Criar, inclusive, uma nova estrutura – dramática, não literária.

Um exemplo: alinhavei um “tempo dos narradores”, com Nael e seu principal interlocutor, Halim, dentro de um barco. Essas cenas permeiam o roteiro de forma diferente do que no livro, mas dialogam com o que está lá. Há também um “tempo da infância”, com cenas dos gêmeos crianças, que fazem contraponto lírico ao drama.

Muitas cenas novas foram criadas – inclusive uma das mais importantes da minissérie, que é a partida dos gêmeos para o Líbano, em que a mãe impede que um deles embarque. Outras tantas foram cortadas, ou reinventadas; tempos foram amalgamados, comprimidos ou distendidos – porque o tempo da literatura é muito diferente, e o meu trabalho era encontrar o tempo audiovisual. Ou seja, como disse Walter George Durst, traí o livro muitas vezes, mas sempre por amor.


ABRA. Quais são seus novos projetos? Há novos planos de trabalho com o Milton Hatoum? E com outros autores? Há projetos originais seus em gestação?

MC. Sim, vários projetos em etapas diferentes de desenvolvimento. Para o cinema, estou escrevendo outras duas versões audiovisuais para textos do Milton – uma com o diretor Sérgio Machado, a partir do conto “Adeus do Comandante”, e outra com Marcelo Gomes, a partir do “Relato de um Certo Oriente”. Como os diretores são também roteiristas, são processos bem diferentes do que aconteceu em Dois Irmãos, em que trabalhei sozinha.

Estou desenvolvendo também a adaptação de um livro maravilhoso, “A vendedora de Fósforos”, de Adriana Lunardi, que vai ser dirigida pela Ana Luiza Azevedo, da Casa de Cinema de Porto Alegre; e um documentário muito especial sobre Hector Babenco, com direção da Bárbara Paz.

Na Globo, tenho dois projetos em andamento com o diretor José Luiz Villamarim.

Confira abaixo algumas imagens dos bastidores das gravações, diretamente do arquivo pessoal da Maria Camargo.

Making of de Dois Irmãos

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