Roberto Faria, um dos mais importantes nomes do cinema nacional fala de sua carreira, da vida do cineasta no Brasil e analisa como poucos o atual momento de produção brasileira para a sétima arte.
Entrevista publicada na “Revista de Cinema” na edição fevereiro/março.
Revista de Cinema: Seria interessante se pudéssemos começar com você contando um pouco do caminho que te levou originalmente até o cinema, como opção de carreira e de vida. Roberto Farias: Sou friburguense. No curso Científico, conheci Dickson Macedo, irmão de Watson Macedo, diretor da Atlântida (“Este Mundo é Um Pandeiro”, “Carnaval no Fogo”, “A Sombra da Outra” ) filmes que eu assistia no cinema Eldorado, na minha terra. Eu e meus amigos promovemos um concurso de fotografia e convidamos Watson a participar, como friburguense, e ele aceitou.
Watson não era de Friburgo, mas sua família estava estabelecida lá, no Hotel Friburguense, de sua mãe. Travamos conhecimento. Watson ia a Friburgo nos fins de semana e passava temporadas escrevendo os roteiros dos filmes que ia fazer.
Interessado, eu não saía de perto. Logo demonstrei interesse em trabalhar em cinema. Watson me deu alguma esperança, quando eu terminasse de estudar. Logo, aos 18 anos, fui para o Rio de Janeiro para fazer o vestibular de Arquitetura, sempre passando na Atlântida em busca de trabalho.
Com minha insistência, deram-me a oportunidade de fazer as fotografias de cena (still). Eu queria mesmo era a carreira da fotografia, mas Edgard Brasil, o fotógrafo, já tinha seu assistente. Para ganhar um pouco mais, disseram que eu teria de acumular o cargo de assistente de direção.
Naqueles tempos essa era uma função inexistente. Começou comigo, e significava fazer tudo, trazer cafezinho, bater a claquete, anotar as roupas e a continuidade, ajudar os atores a decorarem o diálogo etc.
Aos poucos, os diretores foram percebendo que eu era mais útil na função de assistente. Transformei-me numa espécie de público número 1 das cenas filmadas. Ao gritarem “corta”, eles procuravam descobrir a impressão que a cena havia me causado.
Se eu tivesse alguma restrição à interpretação, por exemplo, fazia um gesto, uma careta, e eles filmavam novamente. Percebi que minha função poderia ser mais importante que trazer cafezinho e que os diretores não filmavam sem a minha presença. O primeiro diretor com quem trabalhei não foi Watson, foi José Carlos Burle, no filme “Maior que o Ódio, em 1950.
Revista de Cinema: Como você lembra dos tempos da Difilm?
Roberto Farias: A Difilm foi o resultado de muita discussão com o grupo Cinema Novo. Na verdade, inspirada por mim e meu irmão Riva. Eu, na época, já era veterano, com 10 anos de cinema, 14 longas como assistente e 5 como diretor.
A recuperação dos investimentos era minha maior preocupação. Propus a criação de uma distribuidora para aumentar a renda do produtor e principalmente eliminar o intermediário entre ele e o exibidor. Isso significava obter mais 20% da receita da bilheteria e evitar desvalorização da renda.
Na época, a renda chegava ao produtor com meses de atraso porque não só o distribuidor, mas muitos exibidores custavam a pagar as faturas. A Difilm começou com o filme “Crime de Amor”, baseado num fato policial conhecido como “A Fera da Penha”. O Diretor e produtor era Rex Endsley, inglês radicado no Brasil, que n_o pertencia ao Cinema Novo, nem fez outro filme depois disso, que eu saiba.
A Difilm transformou-se numa distribuidora respeitada e contribuiu para solidificar o Cinema Novo. Aos poucos, porém, surgiram contradições entre seus membros. Apesar de participar do grupo por minhas relações com Glauber Rocha e Luiz Carlos Barreto, o núcleo duro do Cinema Novo não se sentia confortável com minha produção, sempre voltada para um cinema de qualidade, mas objetivando o público.
O primeiro filme de minha produtora distribuído pela Difilm foi “Toda Donzela Tem um Pai que é uma Fera”, de Gláucio Gil. Um grande sucesso de bilheteria, o segundo, “Roberto Carlos Em Ritmo de Aventura”. Críticas veladas, seguidas de dissidências.
Glauber foi o primeiro a sair da empresa, fundando a Mapa Filmes, com Zelito Vianna. Apesar de ter consciência da necessidade da união de vários cineastas para manter uma distribuidora, sentia-me prejudicado porque evitar o giro da receita dos meus filmes pelos intermediários era meu objetivo principal. E minha renda estava sendo usada para financiar filmes dos sócios da Difilm.
Riva, meu irmão, Jarbas Barbosa, Jece Valadão e eu fundamos a Ipanema Filmes para distribuir exclusivamente os nossos filmes. Queríamos demonstrar que eles eram indispensáveis e que a Difilm não se sustentaria apenas com os filmes que visassem o mercado de arte. Foi o que aconteceu. Depois da nossa saída, a Difilme praticamente desapareceu.
A Difilm foi fundada por 11 cineastas, que constavam do seu contrato social: Rex Endsley, Riva Faria, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Santos, Leon Hirzmann, Luiz Carlos Barreto, Roberto Farias.
Revista de Cinema: Aos poucos sua família foi entrando no cinema e hoje os Farias são um dos maiores clãs do cinema brasileiro. Como se deu isso?
Roberto Farias: Fomos criados com amor, para sermos solidários, amigos. Filho de um marceneiro, nosso pai aprendeu a profissão de açougueiro com um cunhado. Homem sensível, papai tinha pouco estudo, mas muitos dons. Solucionava problemas, como um engenheiro, trabalhava a madeira, como um artesão. Ninguém como ele tratava as feridas acidentais em conseqüência das artes dos filhos.
Gostava de música. Para ele, quem sabe tocar um instrumento musical, é feliz. Nossa mãe adorava cinema. As primeiras imagens de filmes na minha memória remontam a uma idade tão antiga que nem posso precisar. Antes de sair de casa para o cinema, mamãe não esquecia a chupeta e da mamadeira, caso eu chorasse no colo dela durante a sessão.
Cresci assim, e assim me lembro das etapas: primeiro no colo dela, depois sentado no braço da cadeira, para ver o filme, e, finalmente, ocupando uma poltrona só para mim. Sou mais o velho. Quase 4 anos mais que o Riva e 5 a mais que o Reginaldo. Eles vieram para o Rio em seguida, quando Watson produzia seus filmes associado a Oswaldo Massaíni e Roberto Acácio.
Eu era o exemplo de alguém que saíra da cidade pequena, já ganhava meu dinheirinho e me tornara independente, apesar de alguns tropeços. Era natural que buscassem estar juntos comigo. Riva, que trabalhava desde muito cedo, como contínuo num banco em Friburgo veio em seguida; Reginaldo também trabalhava num banco, mas cultivava desejo e vocação para ator, desde que, anos antes, Watson dissera que precisaria de um menino de 12 anos, como ele, para um filme que iria fazer.
Esse filme nunca saiu. Reginaldo cresceu preparando-se para ser ator. Lia, estudava, interpretava. Dotes que a família já percebera desde os tempos em que, ainda bebê de 2 anos, imitava bichos, fazia discursos sem saber falar, e tentava imitar com a boca, os sons da banda de música de Friburgo, com seus pratos e bumbos. Trabalhamos juntos pela primeira vez no filme de nossa produção “Rico Ri à Toa”, com Zé Trindade e Violeta Ferraz. Revista de Cinema: – Relendo “Revisão crítica do cinema brasileiro”, é curioso como Glauber o tinha como exemplo de um realizador dividido em dois. Essa descrição vinha em grande parte devido ao fato de você ter começado sua carreira nas chanchadas, não é? Como era isso?
Roberto Farias: Eram tempos remotos e é natural que ele pensasse assim. A Atlântida ficou conhecida como “A produtora das Chanchadas da Atlântida”.
Era uma época em que não se dava muito importância ao filme nacional. Mas a Atlântida não fazia somente chanchadas. “Moleque Tião”, “Também Somos Irmãos”, “Terra Violenta”, “A Sombra da Outra”, “Maior que o Ódio”, “Areias Ardentes” foram tentativas de outros caminhos.
Dos quatro filmes em que trabalhei lá, somente dois são chanchadas. “Maior que o Ódio” era um policial, “Areias Ardentes”, um drama de mistério. Somente “Aviso Aos Navegantes” e “Aí Vem o Barão” eram chanchadas.
Revista de Cinema: Você costuma rever seus filmes?
Roberto Farias: Raramente. Às vezes, quando quero lembrar mostrar a alguém como fiz uma seqüência, ou enquadrei um plano, movimentei os atores, desloquei a câmera. Por vezes, assisto alguns trechos, quando são exibidos no Canal Brasil.
Revista de Cinema: – No período da Embrafilme, como era a relação entre o ministério de Educação e Cultura e o ministério da Justiça? Neste sentido, “Pra frente Brasil” é como um desabafo, não é?
Roberto Farias: A relação da Embrafilme com o Ministério da Cultura e mesmo com o da Justiça era boa. A Justiça era parceira da Embrafilme, porque a Censura Federal, independentemente de sua tarefa de censurar, era importante no controle da Lei de Obrigatoriedade de Exibição de Filmes Brasileiros.
Quanto à Censura, tínhamos por princípio que a nós cabia fazer os filmes e ao Ministério da Justiça censurar, se fosse o caso. A nós cabia lutar pela liberdade de expressão e não foram poucas vezes que procuramos interferir para liberar filmes ou trechos censurados. Mas não houve desgaste.
Nossa maior dificuldade era com os órgãos de segurança. O DSI, um braço do SNI no Ministério da Educação, e o próprio SNI não davam trégua. Éramos vigiados o tempo todo. Os tais bolsões da linha dura, referidos por Geisel, nos viam com muita desconfiança.
Revista de Cinema: Porque você está tanto tempo sem dirigir um filme?
Roberto Farias: Muitas razões. Minha vida foi pautada pela responsabilidade do investimento nos filmes. Meu objetivo é fazer filmes de qualidade artística, mas que não se afastem de suas responsabilidades comerciais.
Cinema é uma atividade cara e o cineasta não pode desprezar o público. De 13 filmes dirigidos por mim, apenas dois têm a participação do Estado: “Pra Frente Brasil” e “Os Trapalhões no Auto da Compadecida”. A história do “Pra Frente Brasil”, todo mundo conhece: foi interditado pela Censura e para liberá-lo, quase um ano depois, tive de devolver os recursos que o Estado investiu, de modo que verdadeiramente, só um filme meu teve investimento do Estado.
Aliás, devidamente pagos com a bilheteria. O mercado mudou muito, de 3.500 salas, chegamos a apenas 600. Hoje em recuperação, tem algo como 1.200 salas. Quando havia mercado, o risco era menor. Mesmo assim, o cinema nacional carecia de ajuda,. Hoje, não pode viver sem ela. Passei a fazer televisão, onde encontro reconhecimento pelo que aprendi a fazer na vida: filmar.
Revista de Cinema: Você poderia falar um pouco sobre os projetos “Sete pistolas do bem” e “O hóspede americano”? Ainda pensa em tirá-los do papel?
Roberto Farias: “Sete Pistolas do Bem” foi um título provisório que dei para um roteiro elaborado por mim e Flávio Leandro sobre as milícias que expulsam bandidos das comunidades, dominam as favelas, mas acabam por se comportar como eles, cobrando pedágio e segurança. O título é “Poder Paralelo”.
Revista de Cinema: – Para os leitores que desconhecem como se divide a renda de um filme, você poderia esclarecer o processo?
Roberto Farias: Sem considerar divisões entre sócios da produção, falo apenas da renda dos filmes nos cinemas. Em primeiro lugar, vêm os descontos de impostos. Em seguida, a praxe é a divisão da renda em 50% / 50% entre o exibidor e o produtor. A renda do produtor deve pagar vários custos, o da distribuição vem antes de tudo e pode custar entre 20 a 25%.
O distribuidor, normalmente, responsabiliza-se pelo custo de cópias e publicidade, que desconta em seguida, após retirar sua comissão. O que sobra é para pagar os custos de produção. Simplificando:
Renda total 100% – Descontos de impostos.
Sobram X, que viram novamente 100%. Metade para o exibidor, metade para o produtor.
A metade do produtor vira novamente 100% destes, o distribuidor leva 20 a 25%.
Do que sobra, são descontadas as despesas de lançamento, cópias, publicidade.
O produtor fica com a sobra daqueles 100% iniciais, que significa de 12% a 15% do que o filme fez lá atrás. Essa sobre é que deve pagar os custos de produção. Lucro, só depois disso tudo.
Revista de Cinema: Recentemente você armou uma bomba ao anunciar que este ano a renda de todos os filmes brasileiros para os produtores não passará de R$ 10 milhões. Mas a bomba parece ainda não ter explodido.
Roberto Farias: Bombas desse tipo só explodem quando a imprensa decide. Pelo fato dos organismos do cinema terem sido criados durante o governo militar, durante muitos anos o cinema brasileiro teve a antipatia da imprensa.
Não foi o principal fator, mas isso contribuiu para a extinção da Embrafilme e o Conselho Nacional do Cinema pelo governo Collor, como entidades desnecessárias ao Estado brasileiro.
Revista de Cinema: Você poderia nos explicar sua defesa por um Adicional de Renda diferente do que este que está em vigor?
Roberto Farias: Há uma enorme soma de recursos é investida no cinema brasileiro. Hoje a produção dos filmes conta com incentivos federais da Lei Rouanet, da Lei do Audiovisual, do BNDES da Petrobrás e algumas estatais.
Há incentivos diretamente concedidos pelo MINC, há estaduais e municipais, além de investimento das Majors, através de renúncia fiscal do governo federal. Tudo picado. O MINC se esforça para disciplinar essas aplicações e isso acaba se dando nem sempre com justiça.
Por exemplo: o próximo edital da Petrobrás diminui o patamar de produtores e diretores que não fizeram filmes nos últimos 4 anos. Uma vez que os incentivos fiscais têm mais de quatro anos, isso significa simplesmente que o edital só contempla aqueles que fizeram filmes com recursos incentivados.
Todo produtor de cinema que investiu recursos do próprio bolso situa-se numa faixa anterior. A principal vantagem do adicional de renda é estimular investimentos da iniciativa privada. Após o filme ser produzido e exibido é concedido um adicional à renda bilheteria, que preconizo de 100%, como mínimo.
O bem maior do Adicional é a garantia da liberdade de expressão. Ao serem produzidos, os filmes não dependem da opinião de investidores de empresas que nada têm a ver com o cinema, nem de diretores de marketing e Comissões de Seleção.
Por outro lado, essa forma de incentivo obriga o produtor a dar importância aos resultados de seu filme diante do público porque ele ganhará mais na medida em que seu filme alcançar maior parcela desse público.
Os incentivos fiscais que sustentam o cinema brasileiro hoje são oferecidos antes e resultam numa imensa quantidade de filmes que sequer chegam às bilheterias. Dentre os produtores atualmente ativos no Brasil há pouquíssimos que têm memória de um cinema em que fazer público é de fundamental importância.
O adicional de bilheteria oferecido hoje não é desprezível, mas significa um duplo incentivo, já que nenhum filme se produz no país sem incentivo fiscal.
Os valores necessários a implantação de um Adicional de Renda de 100% da parte do produtor na exploração de seus filmes seriam pequenos em relação ao que se gasta anualmente em incentivos fiscais, dariam um formidável impulso no cinema brasileiro e iriam corrigir um festival de gastos, que considero perigoso para o cinema nacional diante da opinião pública. Os filmes têm incentivos antes e depois.
São gastos anualmente pelo menos 200 milhões de reais em produção de filmes nacionais.. 20% desses recursos são 40 milhões.
A receita do produtor em todos os filmes de 2004, foi de 22 milhões de reais, portanto, 40 milhões de Adicional de Renda triplicariam sua renda. O produtor que acredita no cinema brasileiro teria condições de reinvestir e caminhar com suas próprias pernas, dependendo de sua relação com o público.
Em 2006 a renda de todos os filmes nacionais parece não ter chegado a 10 milhões. O Adicional de Renda de 100% + a renda efetivamente feita na bilheteria significaria um aumento de receita 5 vezes maior para o produtor. Num cenário ideal, o país teria economizado 160 milhões de reais.
Imaginem o que se evitaria em burocracia hoje instalada para examinar as contas dos produtores porque o incentivo com recursos públicos vem antes do filme ser feito. Se os filmes forem produzidos com recursos privados, não haverá necessidade de saber quanto custaram.
Seus custos seriam questão exclusiva da contabilidade das empresas. Como o investimento seria privado, certamente esses custos baixariam por não contarem com incentivos a priori.
Na sua maioria, os jovens que hoje fazem cinema não são mais ricos, nem mais pobres, dos que fizeram o Cinema Novo na década de 60. Eles empenharam a casa dos pais, venderam o apartamento da tia, a bicicleta, comeram sanduíche, passaram noites sem dormir, fizeram filmes rápidos e inteligentes e não ficaram devendo nada a ninguém.
O Adicional perdeu-se na história e nunca mais foi retomado. Pena porque era o mais justo incentivo que o cinema brasileiro já teve.
Revista de Cinema: Há quem diga que a simples substituição do sistema atual pelo que proponho paralisaria o cinema brasileiro O que você acha?
Roberto Farias: Há quem diga que a simples substituição do sistema atual pelo que proponho paralisaria o cinema brasileiro porque ninguém investiria. Para não abandonar minha proposta por esse motivo, imaginei uma fusão, uma convivência por um ou dois anos das duas formas, até nos livrarmos do atual sistema.
Ao produzir um filme, quem se utilizasse de um incentivo fiscal antes só teria direito a 50% do Adicional de Renda, quem utilizasse 2 incentivos, teria apenas 25%, até nenhum adicional. O importante seria começar a mudar o que me parece insustentável ao longo do tempo.
Minha preocupação maior é que no momento em que a imprensa se der conta do que está acontecendo e encarar esse problema de frente, o cinema brasileiro poderá estar com os dias contados. Uma canetada acaba com ele, como aconteceu nos tempos do Collor.
Por isso, preferiria uma decisão radical. Surgem, então, os defensores dos filmes de pesquisa estética, os de arte, os de estréia etc. Nos tempos do Adicional de Renda do Instituto Nacional do Cinema, todos os anos havia a escolha de 10 ou 20 filmes, considerados “De qualidade”.
Eram escolhidos por uma comissão renovada a cada ano, que concedia um percentual ainda maior, além daquele a que tinham direito todos os filmes realizados no ano. Para mim, esta é a única forma em que concordo com a existência de uma Comissão.
Com toda a subjetividade que é julgar uma obra, é mais sadio julgá-la depois de feita. Não se compara com Comissões que decidem qual filme merece ou não ser realizado.
Para finalizar, uma das dificuldade de implantar minha proposta é convencer à Receita Federal, ao Ministério da Fazenda, ao Governo Federal, que disponibilizar os recursos no orçamento para o Adicional de Renda, através de uma Lei, é melhor e muito mais barato que oferecer renúncia fiscal e incentivos às empresas para descontarem os investimentos feitos em cinema do imposto de renda a pagar.
A Receita é contra e falta vontade política, além da desconfiança dos cineastas em relação a qualquer governo. Tudo que depende do orçamento e pode ficar para as calendas. Sem falar na inércia de muitos cineastas que estão contentes com o atual status quo…
Revista de Cinema: Em sua filmografia constam alguns projetos mais ousados em termos de experimentações como, por exemplo, o “Selva trágica”. Como se deu o processo de produção para esse filme? Você conseguiria tê-lo produzido hoje?
Roberto Farias: Acho difícil por dois motivos. “Selva Trágica” foi feito com empréstimo bancário. A decisão foi exclusivamente minha. Depois, quem se interessaria em colocar recursos incentivados num filme sobre ervateiros escravizados na fronteira do Brasil com o Paraguai?
Revista de Cinema: Glauber Rocha teve financiamento da Embrafilme para realizar “A idade da terra”. Você era então o presidente da entidade. Glauber teve de apresentar orçamento e roteiro?
Roberto Farias: Este é um exemplo que costumo dar. Pena que o roteiro original apresentado à Embrafilme deva estar por aí, em alguma prateleira empoeirada da burocracia. Nenhuma Comissão Responsável daria incentivos ao Glauber por aquele roteiro. O financiamento a ele foi dado pelo seu currículo, pela importância que sempre teve no cinema brasileiro.
Revista de Cinema: O período em que você esteve na presidência da Embrafilme é hoje considerado a era de ouro da entidade. E na verdade, suas idéias lembram de certa maneira o modelo aplicado pela Embrafilme, não é?
Roberto Farias: Não prego a volta da Embrafilme. O sistema de produção e aplicação de recursos, sim. Era o ideal. Mas não acredito numa Distribuidora Estatal. É muito difícil segurar a burocracia, o tráfico de influência, o empreguismo.
Curiosamente, isso só foi conseguido na Embrafilme porque estávamos sob um regime militar e os dirigentes da empresa levavam a sério a resistência a esse perigo. Por outro lado, empresas públicas têm de obedecer a uma série de regras burocráticas que são incompatíveis com a iniciativa privada, principalmente numa atividade tão dinâmica quanto a distribuição de filmes em que decisões têm de ser tomadas com rapidez.
Revista de Cinema: A bilheteria do filme brasileiro está em queda desde o recorde de 21% do mercado em 2003. Não é indício de desinteresse do público pela produção nacional?
Roberto Farias: Não acredito nisso. Há um divórcio entre o que o cinema que o cineasta quer fazer e o que o público quer ver.
Revista de Cinema: O que você acha da afirmação do secretário de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, de que não se deve por a culpa no público pelos baixos números na bilheteria, de que os filmes não estão sendo feitos visando o público, mas os concursos de patrocínio?
Roberto Farias: Concordo e diria ainda mais: visando as Comissões de Seleção, a consonância com a política do MINC.
Revista de Cinema: Nenhum filme se paga mais só no mercado de salas. A ausência do filme nacional da TV não é o grande nó no caso brasileiro?
Roberto Farias: Atualmente, não vejo diferença entre a produção de dramaturgia na televisão e no cinema. Tanto no cinema como na televisão há bons e maus produtos. Houve uma época, quando a televisão começou no Brasil, em que a legislação poderia estabelecer um percentual para a produção independente.
Para a televisão, como produção própria, ficaria sobretudo o jornalismo, os shows etc. Mas o cinema brasileiro tinha poucos produtores e não havia como abastecer a televisão. Por outro lado, a televisão ainda não sabia que rumo tomar.
No que diz respeito à dramaturgia, a maior parte baseou a programação em filmes estrangeiros. A TV Tupi fez novelas, seriados, teleteatro, mas nunca fez do produto brasileiro o principal de sua programação.
Depois que a Globo entrou no mercado, Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, deu ao produto nacional o privilégio de seus maiores esforços. Não deu outra. O público escolheu a dramaturgia brasileira e os anunciantes foram atrás.
A televisão aperfeiçoou-se como indústria da produção audiovisual e não há, hoje, no Brasil ninguém que possa rivalizar com ela nesse sentido. Cabe então a pergunta. Como e por que exigir da televisão a obrigação de exibição do cinema naciona?
As novelas, hoje exibidas em mais de 100 países, os prêmios e o reconhecimento internacionais à produção da televisão brasileira demonstram que ela preenche satisfatoriamente as necessidades de uma produção própria que um país pode desejar.
O cinema brasileiro, como vanguarda do audiovisual, não tem feito mais que a televisão. Acrescente-se a isso a quantidade de técnicos, atores, maquinistas, figurinistas, cenógrafos, empregados com carteira assinada, férias e 13o salário.
Seria desejável que a televisão exibisse mais filmes nacionais? Seria. Mas nesse quadro é justo obrigar através de leis? Não me parece. E ainda que triplicasse a presença do filme nacional na televisão, os valores de mercado são baixos e não são significativos.
O produto americano é preponderante no mercado mundial de cinema e televisão e ele determina os parâmetros. Tanto no cinema, como na televisão, recebemos o excedente da produção mundial. Filmes que necessitam obter do nosso mercado uma pequena parcela dos seus custos, ou melhor, dos seus lucros.
Esta prática é a mesma que coloca o cinema nacional em condições de desigualdade em relação ao estrangeiro nas salas de cinema. Enquanto não exploramos nossos filmes em escala mundial, como os americanos conseguiram, dependemos 100% do mercado interno e temos de concorrer com o produto deles, mais rico em valor de produção, e com o hábito de consumi-los arraigado nos espectadores do mundo inteiro.
Revista de Cinema: O cinema brasileiro já teve um Estado que realmente o protegesse? A participação do Estado no cinema nacional é hoje estruturante ou compensatória?
Roberto Farias: O Estado nunca deu a devida importância do cinema brasileiro.Todas as medidas, desde a década de 30 foram modestas. Para comparar, tomo como exemplo fato recente na área da comunicação.
Ao privatizar as teles, o Governo Fernando Henrique não só convocou empresários como o BNDES financiou-os; a Receita Federal concedeu renúncia fiscal de 100 do Imposto de Renda sobre o excedente aos lances mínimos exigidos nos leilões. Algo na casa dos bilhões.
A verdade é que o produtor brasileiro nunca teve incentivo fiscal diretamente dirigido a ele. Os incentivos atuais são oferecido à empresas a quem o cineasta precisa recorrer e convencer a aplicar no seu filme. Filme que precisa enfrentar o cinema americano poderoso no mercado.
Não há verdadeiramente um incentivo vigoroso para a produção do audiovisual no Brasil. 3 ou 4% do imposto a pagar pelas empresas é um incentivo pulverizado, mínimo, que não estimula verdadeiramente as grandes empresas a entrarem no setor. Não anima ninguém a disputar um mercado mundial de bilhões de dólares.
Agora mesmo, a nova lei criou uma espécie de artigo 3_ para as televisões, como o que é concedido às distribuidoras internacionais. Vejam só: no artigo 3_ da Lei do Audiovisual a renúncia fiscal é de 70% do imposto a pagar sobre a remessa de lucros da exploração dos filmes estrangeiros no Brasil.
Ao se imaginar incentivo para as televisões, procurou-se um sistema semelhante, em que pode ser aplicada em filmes, telefilmes, e programas com produtores independentes parte do imposto de renda sobre a remessa de lucros de filmes, programas e esporte estrangeiros.
Por o incentivo às televisões tem de ser parecido com o das Majors e incidir sobre remessa de lucros para o exterior? Os técnicos da Receita Federal devem rir do nosso esforço para criar recursos para o audiovisual.
A verdade é que uma renúncia fiscal de 70% deveria ser concedida às televisões para estimular a co-produção com produtores independentes, mas sobre o Imposto de Renda a pagar do que é produzido aqui mesmo, sobre o imposto total das emissoras, não sobre a remessa de lucros do que importa para exibir.
Seria o setor gerando recursos dele mesmo para dinamizar-se. Aí, sim, teríamos o setor incentivado de verdade. Se realmente houvesse interesse em dinamizar o setor e substituir a importação de novelas, filmes e seriados, este seria o caminho.
O cinema nacional daria um salto descomunal em qualidade e público; o estímulo poderia ser vinculado à produção independente e haveria trabalho para todos, se todas as televisões pudessem aplicar em produto nacional 70% do imposto a pagar.
Eficiência, diplomacia e condições históricas, permitiram aos americanos conquistar o mercado mundial do cinema. Como era uma indústria nova, a legislação mundial adaptou-se segundo os desejos de Hollywood.
E no Brasil, mesmo nos tempos da substituição das importações, a legislação que permite a importação e exploração dos filmes estrangeiros ficou intocada. Hoje, neste mundo globalizado, me parece ainda mais difícil alterar esse quadro.
Como produto cultural e educativo, o cinema não se enquadrou como as outras indústrias, com pesados impostos de importação. A solução, paliativa, não enfrentou o problema: à exemplo de outros países, o Brasil adotou a Obrigatoriedade de Dias de Exibição para os filmes nacionais. Lei sempre combatida e mal compreendida.
Mesmo assim, foi a responsável por quebrar o hábito de consumo quase exclusivo de filmes estrangeiros na década de 70 do século passado, com a quantidade de dias de exibição para os filmes nacionais ultrapassando a quota de 140 dias exigida por lei.
Depois do Governo Collor, o cinema brasileiro patina até hoje em busca de soluções que lhe permitam uma continuidade de produção e uma estabilidade econômica. Tentativas têm sido feitas, incentivos concedidos, mas até hoje não se conseguiu equil_brio no mercado.
Como sempre, o filme brasileiro tem obrigação de ser um “block-buster”. Só eles despertam interesse da exibição. Como se pode ver nas estatísticas, os sucessos brasileiros rivalizam com os estrangeiros, mas a receita do filme médio brasileiro fica muito aquém dos estrangeiros.
Os filmes nacionais médios têm um desempenho sofrível no mercado por muitas razões. Entre elas porque os distribuidores e exibidores têm contrato com linhas de produção estrangeiras, dependem dessa produção para assegurar sua sobrevivência e, sobretudo, porque o exibidor procura diminuir seus riscos ao máximo.
Como sua margem de lucro é pequena, qualquer vacilo pode significar prejuízo no fim do ano. O filme nacional de exceção não encontra dificuldade de mercado porque é um “plus” na renda do exibidor, mas o médio sofre, e não consegue tomar o lugar do médio estrangeiro.
Aqui, vejo mais um ponto em que parte dos recursos à disposição do setor poderia ser melhor empregada: financiamento à distribuição e subsídio para diminuir os riscos do exibidor. Para extrair todo o potencial que os filmes nacionais médios têm a oferecer, poderia haver por parte de organismos como a ANCINE ou a Secretaria do Audiovisual do MINC, um sistema de garantia de freqüência média por duas ou três semanas às salas de cinema.
Se o filme atingisse a média, não haveria desembolso, superando, claro, também não. Ninguém sabe quanto fariam no mercado filmes como “O Céu de Suely”, que teve uma boa média de espectadores por cópia, se fossem lançados, por exemplo, com 80 cópias.
Conheço casos de filmes lançados em poucas salas, com desempenho fraco na primeira semana, melhor na segunda, melhor na terceira explodindo nas subseqüentes, até atingir 4 milhões de espectadores.
Revista de Cinema: O que você acha da implantação do Fundo Setorial do Audiovisual?
Roberto Farias: O mercado brasileiro é pequeno. Sem o Adicional de Renda, como mercado suplementar, acho difícil o produtor responsável tomar empréstimos ainda que a juros baixos.
A não ser que faça como alguns espertalhões nos tempos em que a Embrafilme emprestava a juros de 4% ao ano, em vez de associar-se. Eles tomavam os empréstimos, não realizavam os filmes, empregavam o dinheiro e depois voltavam para pagar, para alegria de Diretores Gerais anteriores a mim.
Citados como exemplo a um grupo de cineastas em que estava Zelito Vianna, este riu da ingenuidade do Diretor Administrativo da empresa. Para Zelito, esses produtores não faziam vantagem alguma. Legal seria correr o risco de fazer o filme e voltar para pagar o empréstimo…
Revista de Cinema: Você foi a favor da recondução de Gustavo Dahl à presidência da Ancine. Porque?
Roberto Farias: Sempre tive divergências com Gustavo, mas é preciso reconhecer que ele lutou pela ANCINE, procurou um equilíbrio entre os diversos setores do cinema. Grande parte da atividade via diálogo mais fácil com ele.
Os novos diretores da ANCINE, em que pese o desejo explícito de bem conduzir a atividade, vêm de setores em que a experiência na Indústria do Cinema é nenhuma. Gustavo esteve comigo na Embrafilme, dirigiu a Distribuidora, teve estreito contato com os exibidores e é um diplomata.
Entendi que o setor ficaria menos apreensivo se ele permanecesse e tinha certeza de que nada que os jovens novos diretores quisessem executar como política em favor do cinema brasileiro encontraria obstáculos com Gustavo.
Uma nova era se apresenta ao Cinema Brasileiro e Gustavo seria suficientemente esperto para entender e embarcar nesse movimento, ajudando a aparar possíveis arroubos de entusiasmo diante do poder. Ele não foi reconduzido.
A história coloca nas mãos de Manoel Rangel, Leopoldo Nunes e Nilson Rodrigues uma responsabilidade, agora, muito maior. Responsabilidade que não será dividida, assim como as glórias.
Revista de Cinema: Como você avaliaria o ano cinematográfico de 2006? E como você vê o de 2007?
Roberto Farias: 2006 não foi um bom ano para o cinema, nem para o nacional, nem para o estrangeiro. A quantidade de espectadores diminuiu. Espero melhores dias neste 2007.
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