Ricardo Linhares é um dos mais importantes roteiristas do Brasil.
Nesta entrevista, seu talento é revelado com generosidade. É também uma aula de criação e inspiração.
Patricia Oriolo: Conte nos como começou a sua carreira?
Ricardo Linhares: Eu comecei a trabalhar em televisão aos 19 anos, em 1981, na TVE. Na época, fazia faculdade de Comunicação na ECO, UFRJ. Conheci Ana Gouveia, produtora de programas educativos. Foi um encontro decisivo na minha carreira, embora casual: éramos colegas num curso de inglês. Desde os 16 anos, eu escrevia peças de teatro (algumas foram premiadas pelo extinto SNT, Serviço Nacional de Teatro).
Mostrei meus textos para Ana, que me convidou para trabalhar como roteirista de um novo projeto chamado Qualificação Profissional, do qual era produtora. Eram dramatizações de 30 minutos direcionadas aos professores primários. Entre outras atrizes, Cássia Kiss fazia uma das professoras, e Vera Holtz, uma das mães. Ao longo de uns quatro anos, escrevi mais de 200 programas. Foi assim que comecei a me familiarizar com a linguagem de televisão.
Eu sou péssimo para datas, mas acho que foi por volta de 1982 que Doc Comparato lançou o seu primeiro curso de roteiro, na CAL. Até então, acho que não havia nenhum curso específico para roteiristas de televisão.
A CAL estava abrindo as portas e o curso do Doc foi o inaugural. A partir das aulas, Doc escreveu o seu primeiro livro, que foi um tremendo sucesso, gerou outras obras e até hoje é referência entre os escritores. Foi um excelente curso, onde aprendi muito e fiz vários amigos.
Uma das tarefas finais do curso era escrever um Caso Verdade. Na época, era um programa muito popular, da Globo, que ia ao ar no horário que hoje é ocupado por Malhação. Contava uma história dividida em 5 capítulos de 30 minutos, de segunda à sexta-feira.
Trabalhávamos com uma trama principal e duas ou três paralelas. Um excelente formato, que infelizmente não produzem mais. Era baseado em cartas enviadas pelos espectadores, quase sempre abordando doenças, histórias de superação, luta, vitória e redenção.
Tínhamos que concorrer com O Povo na TV, programa mundo-cão de grande audiência, não me lembro de qual emissora. Doc havia solicitado algumas cartas à produção do programa e cada aluno do curso escolheu uma história para roteirizar. Eu escolhi a história de uma mulher que descobria ser epilética e lutava para conviver com a doença.
Sem nos contar, Doc levou alguns roteiros para a produção do programa, e o meu foi selecionado para ir ao ar. Quem fez a protagonista foi Margareth Boury, que hoje assina a bem-sucedida Alta Estação, na Record. A partir desse programa, eu escrevi vários Casos Verdades.
Eu trabalhava como freelancer na TVE e na Globo, e ao mesmo tempo ainda fazia faculdade. Sou formado em Jornalismo, mas nunca exerci a profissão. Só trabalhei em jornal durante um curto estágio num suplemento cultural O Dia, por volta de 1981.TRABALHOS NA TV:
Entre colaboração, co-autoria, autoria solo e supervisão, já fiz 13 novelas e 3 minisséries.
Miniséries
A Máfia no Brasil
O Tempo e o Vento
Anos Rebeldes
Novelas – (co-autor)
O Outro
Fera Radical
Tieta
Lua Cheia de Amor
Dono do Mundo
Pedra sobre Pedra
Fera Ferida
Malhação
A Indomada
O Campeão
Porto dos Milagres
Paraíso TropicalAUTOR
Meu Bem Querer
Agora é que são Elas
SUPERVISOR
Malhação ( Ano 1)
Sempre fui curioso por novidades. Queria saber como era estar do outro lado dos roteiros, atuando. Nessa mesma época, fiz dois anos de Tablado e depois alguns cursos com Sérgio Brito. Definitivamente, ser ator não era a minha praia, mas foi uma experiência sensacional.
O diretor-geral do Caso Verdade era Paulo José, que me convidou para participar da primeira Oficina de Humor da Globo. Na época, havia carência de escritores especializados em humor. Um dos professores foi o saudoso Mário Wilson, pai do nosso colega Mauro Wilson.
Durante as aulas, nós escrevíamos textos e esquetes para vários programas da casa, como exercício. No final do curso, fui contratado para trabalhar como redator do “Viva o Gordo”, na equipe de Max Nunes e Hilton Marques. Acho que estávamos em 1983.
Isso foi muito importante pra mim: tinha uns 21 anos, deixei de ser freelancer e passei a ser contratado! Durante uns quatro anos, trabalhei simultaneamente nos três programas: Qualificação Profissional, na TVE, e Caso Verdade (que depois mudaria de nome para Tele-tema) e Viva o Gordo, na Globo. Por volta de 1987, acho eu, a Globo lançou a Casa de Criação Janete Clair, espaço importantíssimo para os escritores se encontrarem, encaminharem projetos, discutirem idéias.
Uma das primeiras atividades da Casa de Criação foi um curso para formação de novos escritores de novela, o primeiro curso do gênero criado por uma emissora de televisão. Um dos professores era o querido Flávio de Campos, que depois faria inúmeras oficinas de sucesso na Globo, lançando excelentes escritores, que hoje estão no ar escrevendo em diversas emissoras. Entre meus colegas de curso, havia Ana Maria Moretzsohn e Márcia Prates.
Na Casa de Criação, conheci Aguinaldo Silva, que me convidou para ser seu colaborador na novela O Outro. Foi assim que ingressei nas novelas.
Para dar dedicação exclusiva ao curso de novelista, eu tive que sair do Viva o Gordo e da TVE, por falta de tempo. Continuei apenas escrevendo esporadicamente no Tele-tema.
Eu acredito na importância de cursos e oficinas. Fiz vários, em diferentes fases da minha carreira, e todos foram fundamentais na minha formação, não só em termos de aprendizado, mas também nas amizades e troca de idéias.em fez a protagonista foi Margareth Boury, que hoje assina Alta Estação. Anos depois de ter feito o curso do Doc como aluno, eu voltei à CAL, dessa vez como professor. Dei oficinas de roteiro que foram muito gratificantes.
Patricia Oriolo: Dizem que a pessoa “é para o que nasce”. Para ser roteirista é preciso nascer com essa vontade?
Ricardo Linhares: Sem dúvida, ter vocação é fundamental para exercer bem a maioria das profissões, como, por exemplo: médico, engenheiro, escritor, dentista. Até para dirigir ônibus a pessoa precisa ter vocação, ou vai causar diversos acidentes no trânsito.
É preciso nascer com certo dom, que é aprimorado com estudo e na prática da profissão, seja ela qual for. Essa colocação choca algumas pessoas, que acham que arte deve ser posta à parte, como se artista nascesse artista e não precisasse de estudo. Precisa, sim. Sempre precisou.
Numa época em que não havia cursos e faculdades específicas, Rafael estudou com Leonardo da Vinci, por exemplo, e a partir desse aprendizado a sua pintura ganhou transcendência. Enfim, ao longo dos séculos, escritores, músicos, pintores sempre procuraram aprender e se aprimorar.
Por que escrever é diferente? Por que existe faculdade de Odontologia e não existe curso técnico para escritores? A ressalva que eu faço é que a técnica e a teoria jamais podem sufocar a intuição. A única regra que existe é que não existe absolutamente regra alguma. Tudo pode ser modificado, virado do avesso, a teoria ignorada por completo. A técnica é apenas um instrumento, como a ortografia; a matéria-prima do escritor é o sentimento, a intuição e a ousadia.
Da mesma forma que alguém que não tenha o dom para ser dentista pode estragar o sorriso de um paciente, uma pessoa que não tenha o dom para escrever pode produzir obras ruins. Claro que isso é menos danoso do que fazer um cliente perder os dentes, mas não deixa de ser “um estrago”.
Não basta ter vontade de escrever, é preciso saber escrever e ter o que falar. Alguém que tenha vontade de ser engenheiro, mas não tenha vocação, pode vir a construir pontes que caiam. Alguém que tenha vontade de escrever, mas não tenha o dom, pode vir a produzir textos de má qualidade. O consolo é que isso não coloca em risco a vida dos outros.
O sucesso de iniciativas como a Maratona da AR mostram que existe grande procura por cursos e oficinas. Acredito que o crescimento do nosso mercado de trabalho é irreversível. A procura por profissionais capacitados tende a crescer cada vez mais. Quem vai contratar um jovem cheio de idéias mas sem experiência, nem técnica? Se tiver feito um curso profissionalizante regulamentado, acredito que as chances no mercado de trabalho possam crescer.
Patricia Oriolo: Quanto tempo você demorou para preencher nas fichas que pediam a sua profissão a palavra roteirista? Como aconteceu?
Ricardo Linhares: Eu não separo o escritor das demais profissões. Nós não vivemos de brisa, escrevendo apenas em nome da arte ou para exorcizar fantasmas pessoais. Trabalhamos para sobreviver.
Precisamos de contratos, salários, garantias. Escrever roteiros é uma profissão como outra qualquer, como advogar ou pilotar aviões, e tem que ser respeitada e reconhecida. Mas todos nós sabemos como é complicado escrever nas fichas Profissão: Escritor. Até recentemente, eu escrevia Profissão: Jornalista, afinal, sou formado em Jornalismo. Mas se nunca exerci o jornalismo, então por que vou escrever jornalista? Agora, escrevo Profissão: Escritor.
Não tenho mais a insegurança de antes, ao tirar documentos, por exemplo, ou ao abrir conta em banco, de me intitular escritor e ficar preocupado com a reação dos outros, que poderiam achar que escritor vive de bicos, não é uma “profissão respeitável, séria”.
Acho que essa segurança faz parte de uma conscientização maior de categoria profissional que está começando a ganhar corpo agora. Mesmo aos trancos e barrancos, o mercado está começando a se ampliar para nós, na televisão, no cinema, nos institucionais.
Nossa profissão está sendo mais divulgada. Nossos profissionais estão sendo mais disputados e reconhecidos. Isso melhora a auto-estima profissional e os nossos salários. Precisamos regularizar a nossa profissão de escritor e termos todo o amparo legal, a que temos direito como pagadores de impostos.
Patricia Oriolo: Você trabalhou em dois programas antológicos da TV brasileira “Viva o Gordo” e “Caso Verdade” fale um pouco dessas experiências?
Ricardo Linhares: Foram duas experiências profissionais fundamentais na minha formação. Caso Verdade virou Tele-tema quando as histórias baseadas na vida real perderam o impacto da novidade. Passou a ser totalmente ficção. Foi um aprendizado excelente para escrever novela.
Ter uma idéia com fôlego para cinco capítulos, distribuir a trama ao longo da semana, pensando nos ganchos, misturando as paralelas, enfim, era como pensar numa novela, guardadas as devidas proporções, claro. Lamento tanto que não façam mais programas assim!
Nós aprendíamos muito escrevendo e vendo o programa no ar poucas semanas depois. Aprendíamos na prática, avaliando o resultado. Nada tinha de teórico, de escrever e deixar na gaveta, analisar a história apenas no papel. Caso Verdade e Tele-tema formaram inúmeros escritores que hoje estão trabalhando a pleno vapor na telinha.
São tantos, que seria injusto mencionar um ou outro. Viva o Gordo também foi um grande e prazeroso aprendizado com dois mestres: Max Nunes e Hilton Marques. Aprendi o timing da piada no ar, o uso do bordão, a duração do esquete.
O programa era inteiramente gravado às segundas-feiras, das duas da tarde até a madrugada. E a equipe de redatores acompanhava as gravações, sob o comando de Cecil Thiré. Participávamos dos ensaios, alterando na hora de gravar o que fosse necessário para o esquete ficar mais eficiente.
Muitas idéias e piadas surgiam no calor da gravação, com os improvisos de Jô Soares. Os redatores também participavam das reuniões de produção, às quartas-feiras, com os produtores, figurinistas, cenógrafos, sonoplastas, enfim, a equipe artística. E nós dávamos palpite em tudo, ajudando a escolher os atores mais apropriados de cada esquete, os objetos do cenário e a palheta de cores do figurino.
Era como uma pequena central de produção, onde vivíamos semanalmente todas as etapas da produção até o programa ir ao ar.
Patricia Oriolo: Como você avalia a modificação no perfil dos roteiristas de televisão nesses últimos anos? Que tipo de profissional o mercado exige?
Ricardo Linhares: Acredito que o mercado está exigindo dos profissionais, principalmente dos que estão ingressando agora, um bom conhecimento sobre as novas mídias. No mínimo, uma boa curiosidade para acompanhar as novidades.
A maioria dos profissionais que está há mais tempo no mercado tem certa dificuldade em se adaptar às inovações tecnológicas. Acho que esse pode ser o grande diferencial da nova geração, que pode abrir muitas e inesperadas portas. Em termos mais de televisão, eu sinto falta de programas onde novos profissionais possam começar.
Citei como exemplo o Caso Verdade e o Tele-tema. Antes, havia o Caso Especial, na Globo. No SBT também houve uma espécie de teleteatro, me foge o nome agora. Durante anos tivemos o Você Decide e o Brava Gente. Sem falar nos seriados, como Plantão de Polícia e Malu Mulher. Todos esses programas tinham equipe fixa, mas também estavam abertos a novos roteiristas.
Eu comecei neles e conheço dezenas de profissionais que também começaram. Esses espaços não existem mais. As portas de acesso às televisões abertas diminuíram. Tirando a Globo e a Record, que outra emissora investe regularmente em teledramaturgia?
Há os canais pagos, que estão começando, ainda muito timidamente, a investir em conteúdo nacional. Talvez aí esteja o futuro da nossa profissão, com certa segmentação de mercado. Mas tudo vai depender de haver investimento. O melhor exemplo vem dos Estados Unidos.
A quantidade de canais pagos, abertos, produtores independentes, canais sedimentados, enfim, o leque é enorme e está aberto a todo tipo de programa, dos mais convencionais aos experimentais.
Por que há esse mercado? Porque há uma economia rica como suporte. Porque há uma população grande e razoavelmente escolarizada para consumir o tipo de programa que mais lhe agrada. Não há como o mercado de televisão crescer sem o país crescer economicamente e a população tiver mais acesso à educação.
Patricia Oriolo: Como aconteceu a sua parceria com o Aguinaldo Silva?
Ricardo Linhares: Durante uma parte do curso de telenovela da Casa de Criação Janete Clair, os alunos eram divididos em grupos de dois ou três. E uma das nossas tarefas era fazer uma espécie de acompanhamento de novelas que estavam no ar. Víamos os capítulos no ar, líamos os textos e participávamos das reuniões da equipe da novela, como ouvintes. Coube ao meu grupo, Roque Santeiro, um espetacular sucesso.
Durante algumas semanas, participei das reuniões de criação de Aguinaldo, na casa dele, com sua equipe de escritores, nosso presidente Marcílio Moraes e Joaquim Assis. Não é necessário dizer como foi uma experiência marcante para um jovem e inexperiente roteirista acompanhar uma parte do processo de criação de um escritor já consagrado como Aguinaldo. Mas isso durou apenas algumas semanas.
Durante o curso, nós escrevíamos bastante e entregávamos o material para os responsáveis pela oficina. Ao mesmo tempo, eu continuava escrevendo Tele-temas. Na mesma época, nosso colega Roberto Farias estava preparando uma minissérie forte e polêmica, A Máfia no Brasil. E a Casa de Criação recomendou o meu trabalho a ele. Roberto me chamou para colaborar na minissérie, que foi um grande sucesso.
Enfim, eu estava sempre escrevendo alguma coisa, que era lida, analisada. As pessoas começavam a conhecer o meu trabalho. Certa tarde, encontrei Aguinaldo nos corredores da Casa de Criação. Ele havia escrito a sinopse de O Outro e ia participar de uma reunião para discutir detalhes da história.
Conversamos e ele me disse que havia lido alguns textos que eu havia entregue, como exercícios do curso. Eu fiquei muito feliz de saber que ele tinha lido e gostado. Alguns dias depois, ele me convidou para ser seu colaborador na novela. Isso aconteceu por volta de 1986/1987.
A partir daí, fizemos vários trabalhos juntos. Aguinaldo é meu mestre. Excelente escritor, ficcionista brilhante e generoso companheiro de trabalho. Eu devo a ele o meu ingresso e a minha permanência no mundo das novelas.
Patricia Oriolo: Meu Bem Querer foi a sua primeira novela como autor e foi um grande sucesso. Como foi o processo para a criação da novela?
Ricardo Linhares: Originalmente, a sinopse de Meu Bem Querer foi escrita para ser uma novela das seis. Paulo Ubiratan, diretor de núcleo da novela, resolveu levá-la ao ar às 19:00h, depois que leu os primeiros capítulos.
Ele achou que a temática se ajustava melhor às sete horas. Eu quis experimentar no horário o estilo de realismo fantástico das novelas das oito, com um diferencial: mais romance.
A criação da novela partiu da história de amor. Um casal, Antônio (Murilo Benício) e Rebeca (Alessandra Negrini), vivia um amor impossível. Ele era afilhado do padre (Cláudio Correa e Castro) e ela era filha de um pastor protestante (Mauro Mendonça), inimigos há anos. O casal foi separado por intrigas da vilã Lívia (Flávia Alessandra), irmã de Rebeca, apaixonada por Antônio. A intriga deu certo, o casal brigou e Antônio foi embora da cidadezinha de São Tomás de Trás, no litoral do Ceará. Porém, Lívia o seguiu até Fortaleza e o seduziu.
Ficou grávida de Antônio. Arrasada, Rebeca se casou com Juliano (Leonardo Brício), filho de criação do pastor, que era apaixonado por Lívia. Os dois casais tiveram filhos, que nasceram na mesma época. A história dá um salto de 10 anos. Lívia abandona marido e filho em Fortaleza e foge com outro homem. Antônio, então, volta para a cidadezinha onde foi criado, para abrir um posto médico. Reencontra Rebeca, que tem um péssimo casamento. E o amor renasce. Algum tempo depois, Lívia reaparece, arrependida e disposta a tudo para recuperar seu casamento.
Juliano gosta de Lívia, que gosta de Antônio, que gosta de Rebeca, que é casada com Juliano. Essa era a espinha dorsal da novela. E como pano de fundo, havia a cidadezinha de São Tomás de Trás, assombrada por um fantasma, cheia de personagens pitorescos, comandados por Custódia (Marília Pera), a mulher mais rica do local, que há 30 não saia de casa nem recebia visitas, e comandava a cidade pelas mãos do delegado Néris (Ary Fontoura), a quem ela chantageava.
Por fim, descobre-se que Antônio e Juliano são irmãos gêmeos e sobrinhos de Custódia. Quando eles nasceram, Custódia (que não tinha dinheiro) mandou um empregado matá-los para se apossar da herança do irmão, recém-falecido. O empregado, porém, teve pena. Deixou um dos bebês na porta da igreja católica e o outro na porta do templo protestante. E disse à patroa que havia matado os irmãos.
A criação da novela partiu da história de um amor impossível, tipo Romeu e Julieta, mas no lugar da rivalidade entre as famílias usei a rivalidade religiosa. A personagem da grande dama que não sai de casa há 30 anos veio de Dickens, Grandes Esperanças.
E o empregado que não tem coragem de matar os inocentes veio de Branca de Neve, onde o caçador também teve pena de matar a criança e a deixou na porta da casa dos anões. Enfim, é assim que a maioria das novelas nasce, a partir de influências de outras histórias, livros, peças, filmes.
Desde Shakespeare é assim, afinal, o bardo foi buscar inspiração para Romeu e Julieta numa obra italiana. Ou melhor, talvez venha desde os gregos, que transformaram a tradição oral em literatura. Mas histórias e personagens são recriados e reciclados a partir da vivência de cada autor.
Se derem a mesma idéia para vários escritores, com certeza teremos diferentes produtos finais, pois cada um vai escrever de acordo com o seu sentimento e a sua experiência, de vida e literária. Numa telenovela, essa base é apenas o ponto de partida, a primeira fagulha. O que interessa é ter fôlego para desdobrar a trama ao longo de toda a duração da novela, quase sempre mais de 180 capítulos.
Patricia Oriolo: Você já adaptou duas obras de Jorge Amado para a televisão, Tieta e Porto dos Milagres. Quais as principais características que se deve levar em consideração na hora de adaptar uma obra literária fechada, para uma obra aberta como uma novela?
Ricardo Linhares: A obra literária serve de ponto de partida, de referência inicial. Quando é possível, aproveitamos os personagens principais e a espinha dorsal do livro. Depois, mudamos tudo. Se não mudar, não temos uma história com fôlego para mais de 180 capítulos.
Nas minisséries, como no cinema, às vezes é diferente. Em alguns casos, é possível ser um pouco mais fiel à história original, ou a alguns elementos dela. Mesmo assim, na maioria das adaptações é preciso mexer em muita coisa quando se adapta um livro para um outro meio.
O principal é conseguir se manter fiel ao universo do autor. Afinal, a novela só existe porque já havia um interesse em adaptar aquele determinado autor. Em Tieta, por exemplo, tínhamos dois ótimos personagens, Tieta e Perpétua. E tínhamos também a história da prostituta que volta à cidadezinha da sua juventude, onde foi escorraçada pelas forças conservadoras. Agora rica e poderosa, ela volta para se vingar. Um excelente plot.
Mas em Porto dos Milagres, os dois livros que usamos como base, Mar Morto e A Descoberta da América pelos Turcos, não tinham espinha dorsal forte nem personagens interessantes. Aguinaldo e eu só aproveitamos os nomes do casal romântico principal, Guma (Marcos Palmeira) e Lívia (Flávia Alessandra), e o nome Rosa Palmeirão (Luiza Tomé) – eu me refiro aos nomes mesmo, não à trama dos personagens.
Todo o resto foi inventado. Félix Guerreiro (Antônio Fagundes) e sua mulher Adma (Cássia Kiss), por exemplo, não existiam na obra de Jorge Amado. Eles foram inspirados em Macbeth – olha Shakespeare aí de novo! Mais uma vez, essas tramas serviram apenas de ponto de partida para a criação de uma história que ganhou rumos totalmente diferentes enquanto estava sendo escrita, afinal, novela é obra aberta.
Novamente, o que interessa é a vivência de cada autor e a maneira como ele quer contar aquela história, mais do que a história em si, afinal, não existem tantas histórias novas e diferentes para serem contadas. As histórias são mais ou menos as mesmas.
Mas as maneiras de contá-las são infinitas, já que dependem da vivência de cada escritor. Tanto em novela quanto em cinema e teatro, temos que aproveitar da obra literária tudo o que nos for útil, e jogar fora o resto, sem pudor. O excesso de fidelidade não acrescenta nada ao livro original e sufoca a nova obra.
Patricia Oriolo: Qual é o seu processo para escrever? Você é disciplinado?
Ricardo Linhares: Eu sou muito disciplinado no trabalho. Quando a novela está no ar, acordo às 07:00, tomo café e logo começo a escrever. Minhas horas mais produtivas são pela manhã. Eu sou diurno. Não gosto de dormir tarde, mesmo de férias. Curto o dia.
Às 11:00h eu paro de trabalhar, faço uma hora de ginástica, volto para casa, almoço e volto para a frente do computador. Trabalho direto até o jantar. Vejo a novela ao vivo, no ar. Não gosto de ver a novela depois, gravada. Não sei explicar, mas é como se perdesse alguma coisa. Prefiro ver como o espectador comum, com os intervalos comerciais. É um hábito. Sempre fiz assim.
Depois do jantar e da novela, volto para o computador e trabalho até por volta da meia-noite. Quase sempre, esse ritmo de trabalho vai de domingo a domingo. Quando a novela vai indo muito bem, sem maiores problemas além dos habituais, consigo ter folga uma vez por semana, no sábado ou no domingo, e até dá para pegar uma praia ou ir ao cinema.
Há autores que conseguem levar uma vida mais normal, mesmo com novela no ar. Eu, infelizmente, não consigo. Preciso da rotina, de concentração, de silêncio para produzir. Trabalho com música clássica ou com jazz. Música cantada me desconcentra totalmente, ainda mais se for música brasileira. Eu começo a acompanhar a música mentalmente, quando vejo estou cantando junto e nem sei mais o que estava escrevendo.
Eu preciso me programar com antecedência para jantar fora, participar de um compromisso social ou familiar. Eu levo meu trabalho muito a sério. E tenho orgulho de nunca ter atrasado um bloco de capítulos sequer, mesmo certa vez enfrentando problemas com a novela no ar, quando tive que mudar o tom de uma história com a trama em andamento.
Patricia Oriolo: Uma de suas marcas é a presença do realismo fantástico. Você concorda com isso?
Ricardo Linhares: Durante muitos trabalhos, a presença do realismo fantástico foi muito forte nas minhas novelas, sim. Mas acho que agora esse estilo está apresentando sinais de desgaste. No Brasil, nas telenovelas. No mundo, na literatura.
Claro que sempre vai existir espaço para histórias que abordem o fantástico, como meninos que conversam com pessoas mortas ou filmes japoneses de terror. Mas o realismo mágico latino-americano tem forte crítica política, temperada com ironia e sarcasmo. Esse realismo mágico de Garcia Marquez, Cortázar, Isabel Allende, entre outros, é fruto de uma época que passou.
Garcia Marquez, por exemplo, hoje dedica-se a escrever memórias (até memórias disfarçadas). E Isabel Allende lança livros de receitas. No Brasil, vivíamos o fim da ditadura militar, ainda sob forte censura. O realismo fantástico fez muito sucesso ao comentar, com bom humor, o nosso dia-a-dia. Foi um pacto com o público, como se piscássemos um olho: vamos fingir que é tudo fantasia, mas por baixo dos panos nós sabemos que é real.
Hoje, não precisamos mais de metáforas para falar de corrupção política. Os jornais escancaram a podridão do governo, realisticamente. Com as dificuldades da vida, acho que até a capacidade de imaginação do público diminuiu. As platéias hoje querem tudo mastigado. Não querem pensar, analisar, questionar.
O público procura na televisão um espelho do seu cotidiano, histórias reais – ou que pareçam reais – talvez até em busca de indicações de como agir e se comportar. O sucesso dos reality-shows é uma prova disso. Em vez da metáfora e da fantasia, temos o ser humano nu e cru. Como o expressionismo e o surrealismo, por exemplo, o realismo mágico é um estilo que começa a pertencer ao passado. Mas nada impede que um dia ele volte.
Nada é mais volúvel do que a moda e o gosto das platéias. Ou como disse Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. O realismo mágico ficou encantado… e um dia pode desencantar. Em Agora é que são elas, percebi que o público das 18:00h não estava interessado em crítica social ou ironias políticas.
Abandonei o estilo de realismo fantástico, em plena novela no ar, e aos poucos fui investindo no resgate do amor do passado entre Juca Tigre (Miguel Falabella) e Antônia (Vera Fischer). A resposta do público foi excelente. Todos passaram a torcer pelo romance. Não foi uma ruptura, foi uma mudança paulatina, que fiz de modo bem dosado, intencional, passo a passo, cada capítulo mudando um pouquinho o foco da trama.
Foi trabalhoso, mas não mexi no perfil dos personagens, não tirei nenhum ator da novela nem tive que criar novos núcleos. A mudança aconteceu com naturalidade e o público não estranhou. Descobri que o público das seis da tarde é mais simples e quer se emocionar com uma boa história de amor.
Não vai nisso absolutamente nenhuma crítica. O espectador estava certo. Eu quis inovar, levando para o horário uma trama política e debochada, mais adequada a outro horário e outro tipo de público. Hoje, essa conclusão parece óbvia. Mas na época não estava tão clara assim.
A partir disso, comecei a refletir sobre o fôlego do realismo fantástico nas telenovelas. Nesse momento, mais ou menos uns três meses após o término de Agora é que São Elas, Gilberto me convidou a participar de Celebridade. A novela já estava implantada, era um fenômeno de audiência e repercussão.
Mas nossa querida e talentosa Leonor Bassères, companheira de Gilberto em tanto trabalhos, morreu. E ele me chamou para fazer parte da equipe. Eu fiquei muito feliz e aceitei de imediato o convite. Comecei a escrever num estilo que nunca havia experimentado antes, o melodrama urbano, contemporâneo, com o toque de sofisticação do Gilberto. Gostei muito. E agora Gilberto e eu somos parceiros novamente, dividindo a autoria de Paraíso Tropical, que deve estrear no início de março de 2007, às 21:00.
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