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Sala de Roteiro, como funciona e o que não funciona (ainda)



VIDA DE ROTEIRISTA, por David França Mendes,

criador das séries A Garota da Moto e Quase Anônimos, além de roteirista dos longas-metragens Corações Sujos e O Caminho das Nuvens. David é roteirista-chefe na Mixer.

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A partir de uma conversa na lista de discussão da ABRA, acabei fazendo uma descrição do processo em sala de roteiristas que pode ser interessante para quem não conhece esse trabalho por dentro.

Uma sala de roteiro é sempre a cara de quem a chefia. Vou contar como eu faço, e que sei que é semelhante ao que muita gente faz.

O Chefe

Antes de falar do dia-a-dia na sala, acho importante explicar o papel do(a) roteirista-chefe. Vamos em tópicos:

  1. Ele(a) tem que chegar com o material inicial. Da série como um todo e de cada episódio. Criou os personagens, criou o essencial dos conflitos, o universo em que a série se passa. Escreveu o piloto, preparou uma história para a temporada, pensou os mecanismos narrativos, enfim, criou a série do ponto de vista “macro”.

  2. Ele(a) define os passos do processo na sala, o que vai ser feito coletivamente, o que cada um vai fazer em casa e o que ele(a) mesmo(a) vai fazer, e quando.

  3. Importantíssimo: decide qualquer impasse. Todo mundo dá ideias, mas é o(a) roteirista-chefe quem diz quais ficam. E é preciso exercer esse poder, entre outras coisas porque quem vai prestar contas aos produtores, canal, imprensa e público é ele(a), e não a equipe.

  4. Faz redação final de todos os roteiros. Processo que pode ser bastante intensivo. No caso da primeira temporada da A Garota da Moto, por exemplo, eu trabalhei mais de seis meses sozinho depois que a equipe terminou sua parte, afinando cada um dos roteiros.

Sala de Roteiro não é Criação Coletiva

Muita gente que fala de salas de roteiro, mas nunca esteve de fato numa que funcione, passa a noção de uma espécie de bundalelê de ideias aleatórias, misto de terapia de grupo e teatro amador. Não é nada disso.

Numa sala de roteiro o que se faz é construir os beats que compõem a trama de um episódio.

Essencialmente é isso. É esse o trabalho que precisa ser feito. Claro que, para chegar a esses beats e ter uma boa trama se discute personagem, por exemplo. Pode ser preciso ir atrás de referência e pesquisa. Pode-se chegar a questões éticas. Mas tudo isso em busca de construir a trama do episódio.

Uma sala segue os passos do processo normal de desenvolvimento de um roteiro: primeiro sinopse e/ou argumento, depois escaleta, primeiro tratamento, revisão, outros tratamentos, etc. É o mesmo processo que um roteirista faz sozinho.


Elenco e equipe no lançamento da 1ª temporada. Foto Leonardo Nones

Para a segunda temporada da A Garota da Moto, trabalhamos assim:

  1. Passo um: Escaletas criadas na sala, com todos juntos. Em média, levantávamos uma escaleta de episódio por dia, e seguíamos até termos quatro ou cinco escaletas fechadas.

  2. Passo dois: Equipe vai para a casa e cada um escreve um primeiro tratamento de roteiro, a partir de uma dessas escaletas.

  3. Passo três: Equipe se reúne de novo na sala para ler esses primeiros tratamentos. Nesse momento, eu aponto tudo que me parece que não funciona, os outros roteiristas também podem (e devem) criticar, algumas soluções já aparecem, algumas ficam para ser encontradas depois.

  4. Passo quatro: roteiristas voltam para a casa e escrevem um segundo tratamento a partir das notas.

  5. Passo cinco: eu (roteirista-chefe) reviso todos esses segundos tratamentos sozinho, reescrevo o que for necessário, e mando para a produção e o canal.

  6. De volta ao passo um: Retomamos o trabalho em sala para desenvolver mais quatro ou cinco escaletas, enquanto canal e produção avaliam os roteiros da leva anterior.

O processo se repete até termos todos os roteiros. O que vai se tornando mais complexo, e torna o trabalho do roteirista-chefe (no caso, eu) cada vez mais pesado, é que vão chegando as as notas da produção e do canal e é preciso retrabalhar os roteiros sozinho.

Assim seguimos até o fim (no nosso caso, 26 episódios). A equipe se despede e eu fico afinando os roteiros em função de todo tipo de necessidade: dramaturgia, produção, orçamento, novas ideias etc. No caso da primeira temporada da Garota da Moto, alguns roteiros tive que mexer mais de 50%, por todo tipo de motivo.


Os Créditos

Nos Estados Unidos, é praxe que o roteirista que escreveu o primeiro tratamento do roteiro de um episódio específico receba o crédito pelo roteiro daquele episódio. Isso é assim mesmo que toda o restante da equipe tenha contribuído para aquele roteiro e mesmo que o roteirista-chefe tenha mexido bastante. Divide-se esse crédito apenas quando um segundo roteirista (podendo ser ou não o(a) roteirista-chefe) escreve um novo tratamento em que há uma nova trama substancial ou alterações estruturais significativas que impactem pelo menos cinquenta por cento do roteiro.

Eu consegui com a Mixer e o SBT que esse mesmo sistema de crédito fosse usado na nossa série. Na abertura, eu assino a criação (junto com o diretor) e o roteiro-final. Quando inicia o episódio, em cima das primeiras imagens, entra o crédito do roteiro do episódio, dado segundo os parâmetros acima.

É assim que eu trabalho em sala de roteiro, e pelo que eu sei é mais ou menos como todo mundo trabalha. Funciona, e, se a equipe é boa, é um grande prazer. Muitos dos meus melhores dias em 2016 eu passei com minha equipe (Cláudio Felício, Manuela Cantuária, Donna Oliveira, Marcio Tadeu e Renata Kochen) na nossa sala.

Mas se o processo é produtivo e pode até ser prazeroso, o que é que não funciona? Bom, no Brasil, o que ainda não funciona direito é a parte profissional, a remuneração. Vamos a ela.

A Grana

Se você está escrevendo um longa-metragem, ou um roteiro para TV em um outro tipo de processo, você tem uma certa flexibilidade com seus horários. Uma sala de roteiro demanda dedicação integral do roteirista. Não que você vá ter que estar lá absolutamente todos os dias. Em geral, depois de algum tempo de sala, vem algum tempo em casa, escrevendo. Mas como os prazos são bem curtos para escrever, esse outro tempo acaba também sendo de dedicação integral. Fazer uma série, dessa forma, é trabalho de tempo integral de um profissional único e altamente especializado e, como tal, deveria ser bem pago. Acontece que em geral não é.

Venho me preocupando com isso há alguns anos. Na verdade, desde que o mercado (isto é, os produtores e canais) “descobriram” as salas de roteiro. Escrevi no meu blog dois textos a respeito, ambos mais de três anos atrás, e é um pouco triste ver que eu poderia datar os textos de hoje e não faria grande diferença. Os textos são esses:

A questão, resumidamente, é a seguinte: o trabalho em sala é maior que o trabalho de escrever o roteiro, toma um tempo enorme, mas a remuneração não tem acompanhado essa necessidade.

Todo mundo quer as salas. Os canais hoje em dia, quando você vai vender um projeto, logo perguntam: “vai ter sala?”, “quem vai estar na sala?”. Bacana eles reconhecerem isso, só que…

… só que as verbas de desenvolvimento que os próprios canais investem em roteiro (e também as dos editais de desenvolvimento, da Ancine e outras entidades) são as mesmas do tempo em que simplesmente cada um ia pra casa escrever um roteiro e um abraço. Com a inflação em cima, o que se tem é um forte achatamento da remuneração do roteirista.

Hoje em dia, as verbas de desenvolvimento na produção independente, vindas de canais, ficam na faixa dos 200 mil reais, pouco mais ou pouco menos. Quando vem de edital, costuma ser bem menos. Agora peguem isso, dividam por 4 a 6 pessoas, por um período de no mínimo 6 meses, e a gente vê que vai ter arroxo necessariamente. Com exceção dos cabeças de equipe, roteiristas mais experientes, a maioria ganha bem pouco. Isso prejudica a todo mundo, mas acima de tudo aos próprios projetos, que ou vão ter que se virar com parte da equipe sendo menos experiente (ou totalmente inexperiente) ou com roteiristas que vão fazer mais de um job ao mesmo tempo, virando noites e comprometendo a qualidade.

É preciso pressionar canais e editais para subir os valores de desenvolvimento, por todos os motivos possíveis, porque esse processo tão rico das salas de roteiristas é caro mesmo, tem que ser caro, porque tem um imenso valor.

Ninguém ousaria pagar a um diretor de fotografia mediano o que se paga a um bom roteirista na produção independente. Mas, sem o roteiro, o cara vai fotografar o quê?

para seguir o blog do David França Mendes.


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A série VIDA DE ROTEIRISTA é composta de artigos escritos pelos associados da ABRA – uma maneira de abrir espaço para a opinião do autor roteirista sobre diversas questões pertinentes à profissão. As opiniões expressas aqui são de responsabilidade do autor e podem não representar o posicionamento oficial da associação.

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