Vida de Roteirista
O ano apenas começa e a ABRA já exibe uma cara nova. Seja em sua identidade visual, seja na vontade de estampar a cara dos que, pelo Brasil a fora, e em qualquer formato ou gênero, criam as histórias que produtores produzem e diretores dirigem. Histórias que farão parte do repertório e ajudarão o brasileiro a se enxergar e se ver, como num verdadeiro espelho da alma.
A partir deste domingo, vamos estar sempre postando textos de autoria dos roteiristas, falando de nossa vida e deste encantador e árduo ofício que decidimos forjar. Para tal, contamos com as colaborações que todos os membros da ABRA, que queiram oferecer algumas de suas incontáveis linhas, sentenças e parágrafos, com suas falsas pistas, reviravoltas e ganchos.
Um ano de 2017 cheio de lutas e de conquistas para todos.
Juliana Reis
A escrevidão do cachorrinho
por Valéria Motta, que perdeu a conta de quantas vezes encarnou esse personagem patético quando escrevia novela – em nove anos, escreveu sete como colaboradora.
Confesso… já me senti um cachorrinho. Desses que fazem cara de pidão, chantageia e quase chora para ir passear – seja a hora que for. A cena invariavelmente é a mesma: tarde da noite, meu marido chega do trabalho e me encontra praticamente do mesmo jeito que me deixou. De camisola, descabelada, com uma xícara de café e escrevendo. Olho para ele e antes que fale qualquer coisa, leio uma cena em voz alta e aguardo sua reação. Ajusto o que for necessário, reviso e… ufa! Ganho minhas horas de alforria! Com a cabeça ainda fervilhando e o corpo exaurido, faço aquela cara de cachorro caído na mudança e peço: vamos dar uma voltinha?
Juro que só falta a coleirinha – não, não há nada de submissão aqui, nada de discurso machista. Há apenas cuidado com o outro. Há momentos em que escrever novela é tão insano que só desejo ser conduzida para algum lugar onde possa ver gente, estrela, céu. Sentir que existe vida além da minha imaginação. E assim, silenciosamente e amorosamente damos uma volta no quarteirão. Tempo suficiente para o cansaço chegar ao corpo e tudo recomeçar no dia seguinte.
Ler escaleta, escrever cena, fazer revisão, checar continuidade, criar trilha. Tudo num prazo de vinte e quatro horas.
É uma indústria fabular, uma maratona de ideias, uma pressão contínua – e muita reza forte para nenhum ator se machucar, nenhuma externa cair, nada acontecer fora do planejado. Em geral sai. Já escrevi novelas cuja frente era praticamente zero, outras em que tudo teve que ser reescrito no ar pois a protagonista ficou doente e teve que ser retirada rapidamente do ar – acredite este é o pior dos mundos.
Neste ponto, o cachorrinho se transforma num ramster que passa a correr alucinado em sua rodinha. Viro também o coelho da Alice obcecada com os prazos. Afinal, é um capítulo por dia – em condições normais de temperatura e pressão – e doze horas de trabalho… uma maravilhosa, divertida e exaustiva descida ao inferno. Sim, há um paraíso nesse inferno e não é pelo glamour que as pessoas imaginam existir neste ofício – isto é outra novela. É pelo prazer de criar personagens, tramas. É gargalhar sozinha de madrugada ao imaginar uma fala. É chorar ao revisar o último capítulo que precisa ser liberado em poucas horas. É escutar a voz do ator ao colocar palavras na boca dele e se emocionar mesmo com o cachorro da vizinha ganindo feito um louco. É reunião on line para resolver questões de produção – leia-se criar saídas dramatúrgicas na base do custo zero. É ver uma cena no ar e se surpreender como público pois a esquizofrenia é tão grande que assistimos hoje o que foi escrito há uns quinze dias e escrevemos o que irá ao ar semanas depois. Picasso perde.
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Os artigos publicados pelos associados da ABRA são uma maneira de abrir espaço para a opinião do autor roteirista sobre diversas questões pertinentes à profissão. As opiniões expressas aqui são de responsabilidade do autor e podem não representar o posicionamento oficial da associação.
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