Finalmente assisti ao filme e arrisco uns palpites. Não vou afirmar que o filme é isso ou aquilo – a gente conhece os autores, roteiristas e diretor, e sabemos que são democratas -, mas com certeza o filme não se posiciona criticamente em relação aos valores implícitos no comportamento do seu protagonista e da corporação a que pertence.
Vamos ver se consigo me explicar. Em primeiro lugar: a construção dramática. O Capitão Nascimento é apresentado indubitavelmente como um herói romântico. Muita gente pensa que herói romântico é aquele personagem que age segundo os códigos morais, quer dizer, seria o bonzinho, o certinho.
Logo, Nascimento estaria longe disso, já que é violento, autoritário, age à margem da lei, ameaça a mulher, etc. Mas não é bem assim. A melhor definição de herói romântico que conheço (perdoem não lembrar com precisão de quem é, talvez do Lukacs) diz que “é um personagem degradado, vivendo num mundo degradado, lutando por valores autênticos”.
O Nascimento se enquadra à perfeição nisso aí, concordam? Ele vive numa sociedade corrupta, infestada de facínoras, vagabundos, sustentados por burgueses drogados e hipócritas, cercado de colegas policiais desonestos, etc.
Ele, por sua vez, está longe de ser santo, age de modo brutal, à margem da lei, não tem respeito pela vida dos inimigos, etc, mas suas motivações o diferenciam. Ele aspira e luta por valores éticos, morais e autênticos. Esta aspiração o resgata e faz com que a platéia se identifique com ele, porque ela tem exatamente o mesmo desejo: o bem da sociedade, a salvação das crianças, etc.
Os métodos do Nascimento são apenas um mal necessário. Ainda bem que existe o Bope e os nascimentos para fazerem o serviço sujo pela gente. O comentário de uma conhecida minha foi exemplar: pelo menos fiquei sabendo que existe uma parte da polícia que não se corrompe…
Não se posicionando criticamente frente ao universo que apresenta, muito pelo contrário, valendo-se das técnicas dramáticas do envolvimento, inclusive criando a catarse final do público (o tiro na cara do Baiano, anteriormente apresentado como um monstro assassino e odiento, é uma “justa” compensação para a platéia, ninguém há de negar), o filme abre espaço para a identificação do espectador com os protagonistas e a aprovação dos seus métodos como única alternativa contra o mal.
Mas o filme também tem colocações de caráter ideológico, externas à dramaturgia, bastante incômodas. Por exemplo, o soldado Matias – cuja história no filme é um ritual de iniciação, digamos, à realidade perversa do nosso Brasil – vai estudar Direito.
Os roteiristas poderiam pô-lo para estudar Administração, Economia, lá o que fosse. Mas não, foi estudar precisamente “a ciência da lei”. E o que ele encontra lá? Os colegas não passam de um bando de burguesinhos maconheiros, traficantes, defensores hipócritas de direitos humanos (só para os bandidos, “ninguém faz passeata quando morre um policial”, diz o Nascimento).
E o professor não dá aula, por exemplo, de História ou Teoria do Direito, mostrando como as instituições do Direito foram progressivamente se sobrepondo à barbárie no processo civilizatório. Não, nada disso. A aula é sobre Michel Foucault, um sociólogo que esteve muito em voga nos anos 70 e 80, estudioso e crítico dos mecanismos de poder, e incensado por setores libertários e de esquerda.
Só quando vi isso, entendi o porquê do tal Reinaldo Azevedo escrever aquele artigo na Veja intitulado “Capitão Nascimento bate no bonde do Foucault”, onde afirma: “O que o pensamento politicamente correto não suporta no Capitão Nascimento, o anti-herói com muito caráter, não é sua truculência, mas a sua clareza; não é o seu defeito, mas a sua qualidade”.
O articulista faz referência ao velho Kant (coitado!), colocando espertamente a pergunta que o consumidor de droga não teria como responder: “Você só pratica ações que possam ser generalizadas?”
Mas não faz a mesma pergunta ao Capitão Nascimento. Eu faço. O que teríamos se as ações do Nascimento fossem generalizadas? Eu também respondo: fascismo, puro e simples. As SS dos nazistas eram muito parecidas ao Bope, em ideologia, organização, símbolos, tudo.
Se a gente aceita que o Bope e o Nascimento possam ser a solução para a corrupção na polícia, por que não “elevar” o pensamento, e idealizar uma espécie de Bope político, um partido com aquelas características valorosas, com seus militantes vestidinhos de preto (ou verde, como os integralistas) fazendo suas marchas triunfais e esmagando os burgueses boas-vidas e devassos, aliados dos corruptos, dos comunas disfarçados atrás de Foucault, dos políticos, dos Renans, dos bandidos e traficantes?
Ainda há outros detalhes, como a missão recebida por Nascimento se dever à visita do Papa. O herói e seus companheiros agem para “resguardar o sono do Papa”, ou seja, metaforicamente, o sono da consciência humanista, religiosa, etc.
Reitero minha certeza de que os autores do filme não tiveram nenhuma intenção de propor o que induzi da maneira como vi o filme, mas de uma coisa tenho certeza. Que fizeram um filme perigoso para diabo, lá isso fizeram.
Um filme que situa o pensamento crítico, a lei, os direitos humanos, os valores humanistas, etc, como um estorvo à ação da única força que efetivamente combate o crime no Rio de Janeiro. Para terminar, aí vai um dado.
A polícia carioca, no primeiro semestre de 2006, segundo estatísticas oficiais, matou 520 (quinhentas e vinte) pessoas. No primeiro semestre de 2007, aprimorou seu rendimento e abateu 33,5% mais, ou seja, 694 (seiscentas e noventa e pessoas) pessoas.
Na minha modesta opinião, tem alguma coisa errada com esta política de matar favelado. Ou não?
Tropa de Elite, em nenhum momento, questiona esta política, pelo contrário.
De qualquer forma, tem o inestimável valor de provocar saudáveis polêmicas. Só espero que o grande público que não costuma ler nem debater nada, ao final não saia por aí gritando “anauê!”, quer dizer, “caveira!”.
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