*por PAULO CURSINO
Entrei na Globo no final da década de noventa mais ou menos como o rapaz latino-americano da canção do Belchior: sem dinheiro no bolso, sem amigos importantes, e vindo do interior. Em uma época pré-blogs e redes sociais fazer contato e tornar-se conhecido dentro do próprio meio era uma luta. Jovens autores de hoje que reclamam de panelinhas não tem idéia do que é realmente não ter espaço. Acabei escrevendo de tudo pra me garantir. Acho que só não redigi o Santa Missa em Seu Lar, mas bati cartão até no Globo Ciência. Enquanto ralava de um lado, desenvolvia projetos pessoais do outro, daqueles que nunca vingavam. Criava, escrevia, imprimia, fazia capinha, entregava para os leitores, apertava mãos pelos corredores, mas… nada. A maioria dos projetos morria nos escaninhos, alguns sem resposta até hoje. Por sorte sempre fui muito seguro da minha capacidade. E, por sorte maior ainda, conheci Roberto Farias.
Um dos meus projetos foi parar em suas mãos e ele me ligou interessado. Mal acreditei. Nós nos reunimos algumas vezes no Projac e nos demos bem logo de cara. Roberto tratou-me com gentileza e generosidade raras na área. Para Roberto não importava de onde você vinha, filho de quem você era, ou de qual panelinha você fazia parte. Se você escrevesse bem, você estava no jogo. Ele se atinha apenas à criação e ao texto. Sabia ouvir como poucos e era muito preciso nas suas observações. Ainda que algumas vezes pegasse pesado, e fosse duro em uma avaliação, nunca soava arrogante, nunca ultrapassava a linha, elegante sempre. Se eu já o admirava como artista e profissional, passei a gostar dele ainda mais como pessoa e como colega de trabalho.
Roberto batalhou muito para que nosso projeto saísse, deu-me todas as condições, e me dediquei ao máximo. Entreguei um pacote completo de dez episódios finalizados em tempo hábil. Projeto entregue, o material foi bem avaliado e recebeu sinal verde para ser produzido. Estávamos fechando o elenco quando o projeto bateu na trave. Na última hora surgiu outro, muito semelhante, disputando o mesmo tema e público. Como pertencia a um poderoso feudo interno, o meu foi preterido. Juro que se o projeto aprovado fosse melhor eu admitiria aqui. Infelizmente não era o caso. Isso só aumentava o volume de água fria do balde que foi, porém, nem tive muito tempo para me enxugar. Menos de um mês depois Roberto me ligou dizendo que ele, Heloísa Périssé e Ingrid Guimarães haviam emplacado um programa e convidou-me para ser o redator-final. Alívio: eu havia conquistado a sua confiança. Ele então me apresentou à dupla e foi quando o “Sob Nova Direção” nasceu. Nem preciso dizer o quanto isso mudou minha vida.
Trabalhamos juntos durante quatro anos, nas quatro temporadas do programa. Falávamos-nos quase todos os dias no início, uma vez por semana no final. Mas não houve episódio dos 125 que foram ao ar em que ele não colaborasse ou ao menos ligasse para conversar sobre. Roberto, como eu, amava a comédia clássica. Foi ele quem me apresentou a nomes como Leo McCarey, Preston Sturgess, Victor Lima, entre outros. Como todo aprendiz eu cometia gafes constantes em nossas conversas. Como colocar todos os diretores da chanchada dentro de um mesmo pacote – até então nunca havia atentado de que houve várias gerações e estilos – e certa vez perguntei a ele como havia sido dirigir uma comédia na cadeia, “Uma pulga na balança”, e ele respondeu “Sei lá eu, o filme é do Luciano Salce”. Ele sempre me corrigia com elegância e bom humor. Trabalhar com ele me obrigou a estudar e entender ainda mais a comédia brasileira. Era um mentor em todos os sentidos.
Ele me falava sempre da sua vontade de voltar a fazer cinema e sobre a falta de aventuras infanto-juvenis nas nossas telas. “O cinema brasileiro peca em não investir em aventura, a gente devia fazer uma”. Contava histórias de argumentos perdidos, inclusive um filme para Roberto Carlos que nunca foi feito. A sua visão sobre cinema sempre me inspirou. Roberto tinha faro de público, queria ser e foi popular, algo que respeito demais. Se metade de nossos diretores tivessem o seu senso de entretenimento o cinema brasileiro lideraria o mercado. Curtia desafios de produção. Quando falávamos sobre a cena clássica do helicóptero no Túnel do Pasmado, ele tirava onda: “Todo mundo fala disso, mas difícil mesmo foi botar um tanque de guerra na frente da Paróquia de São José, na Lagoa Rodrigo de Freitas em “Toda Donzela tem um pai que é uma fera”. A dificuldade era menos de logística e mais de momento histórico. Colocar um tanque de guerra na rua em pleno 1965 devia ser algo realmente mais tenso. Só Roberto encarava essas. Ele me perguntava por que eu não escrevia para cinema e eu respondia que só escreveria se ele dirigisse. Brinquei dizendo que o que eu queria mesmo era ver meu nome no cartaz com o dele. Ele gargalhava.
Ele tinha muito orgulho de seu primeiro filme, “Rico Ri à Toa”, pensava na possibilidade de um remake com um bom comediante atual. Nunca rolou. Mas nunca escondi de ninguém que foi da visão dele que me inspirei para escrever “Até que a Sorte nos Separe”, uma versão inversa de “Rico ri à Toa” anos mais tarde. Também colaborei no argumento de Roberto Santucci, “O Suburbano Sortudo”, uma espécie de versão funk do mesmo filme. Ambos foram bem e geraram tendência. Alguém até brincou esses dias, acho que foi Rodrigo Fonseca, que as comédias sobre dinheiro atuais representam um subgênero do nosso cinema, a “moneychanchada”, e que fomos nós que começamos com isso. Pois é, não seria exagero dizer que em parte começou com Farias também.
Após o fim do Sob Nova fomos nos reencontrar apenas em 2009, na produção de “De Pernas pro Ar” em outro momento crucial. O projeto já estava bem avançado, roteiro escrito, produtora e distribuidores animados com a proposta, mas ainda não tínhamos definido a atriz principal. Na época o nome mais quente para o filme era Glória Pires, que vinha do sucesso de “Se eu fosse você 2” e era um desejo de Roberto Santucci. Ela chegou a ser sondada, mas faria “Lula, o Filho do Brasil” na mesma data. Várias atrizes foram contatadas, mas nenhuma fechava ou se encaixava. Eu sempre achei que a personagem deveria ser dada a uma comediante de ofício, o texto pedia isso, e o nome de Ingrid Guimarães acabou surgindo naturalmente. Mas havia dúvidas pertinentes sobre o seu peso no cartaz. Carisma e sucesso na TV nem sempre se garantem no cinema e pesava o fato de ser sua primeira protagonista, a primeira comédia popular de Santucci, em uma história que envolvia piadas com vibradores e sex shops. Convenhamos: o pacote era ousado. Até hoje soa assim. Por um bom momento o projeto ficou cercado de dúvidas até mesmo na Globo Filmes. Não me lembro exatamente o quanto isso durou, estou escrevendo de cabeça agora e não consultei ninguém, mas foi uma questão que discutimos. Só sei que, por outro golpe de sorte, a supervisão artística caiu no colo de Roberto. Foi ele quem tranquilizou todo mundo e aprovou o projeto de ponta a ponta, não se envolvendo em escalação, roteiro, direção nada. Mais do que muitos de nós ele sempre soube que o filme e Ingrid funcionariam.
Na pré-estréia, quando o filme já dizia a que vinha, com Ingrid brilhando do início ao fim, sobrava a certeza de que sem ela jamais alcançaríamos o mesmo resultado. Roberto chegou até nos dar uma pequena bronca na saída da sala “jura que vocês chegaram a cogitar outra pessoa?”. Rimos muito. Nós nos encontraríamos mais vezes depois disso, mas acho que foi ali que tivemos uma de nossas últimas conversas longas. Falamos mais uma vez de filmes, de projetos, idéias que não sairiam do papel por vários motivos. Mas eu, de minha parte, estava mais do que feliz naquele momento. Afinal, mesmo não sendo da forma como eu gostaria, acabamos fazendo um filme juntos. Bem, pelo menos nossos nomes estão lá no cartaz.
Descanse em paz, mestre.
PS: fiquei com vontade de produzir uma aventura agora…
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