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A.C. ou Antes da Criatura

Pode se tratar de filigrana perceber aguçadamente como são entrelaçados os “fios de ouro” entre a base dramática do personagem (e sua constituição psicológica) ao trabalho do dramaturgo sobre isso.

Ao autor, a premissa parece simples: vê-se mentalmente o conflito potencial entre personagens com metas opostas e as formas de ação aparecem em sua mente para que possa encontrar o melhor conteúdo dramático.

Desse ângulo, o procedimento é eficaz. Forças com uma meta atuam contra forças com outra meta. Uma concorrência, digamos assim. Visto geograficamente, o autor pode localizar essas forças de atuação nos personagens em conflito, topicamente mesmo. Quer dizer, elas podem estar no intelecto, na emoção ou no instinto de seus representantes imaginários e, de uma forma mais ou menos gradativa, são elas hierarquizadas quanto à sua atuação nos personagens de uma cena, por exemplo.

Topicamente, o autor pode determinar onde elas estão e, hierarquicamente, escolher quais delas predominam no decorrer da cena. É um trabalho seletivo feito sempre com a participação de vários recursos internos do autor.

Outra coisa é pensar sobre a natureza dinâmica dessas forças. Qual é o movimento que elas fazem no interior dos personagens. Certamente, elas têm uma origem ou fonte; então, vale atentar o caminho que elas percorrem.

Outro aspecto desta qualidade é atentar para as coisas lógicas e conscientes que a razão, como uma força, determina na situação vivida por um ou mais personagens. E também nas coisas do inconsciente, absurdas ou desconexas. Tudo isso faz parte de processos psíquicos que envolvem de cima para baixo, autor e personagem.

Quando se pensa na natureza de forças psíquicas, pode se pensar também em “estados” para os personagens na situação na qual eles estarão atuando. Na base da dualidade, seria ver se estão calmos ou nervosos, tristes ou alegres, dispostos ou indispostos, perturbados ou não, etc.

Significa ver como essas forças se compõem, ou estão compostas, nos personagens que encenam a situação, e como e quando elas se movem de um lado para outro. Também é útil pensar na quantidade de forças presentes e a intensidade delas em um potencial conflito. A questão pode se resumir no “mais ou menos”, na intensificação e no resultado dessas forças nos personagens e nas conseqüências disso tudo.

Se o personagem sente muita vontade de beijar a amada e ele o faz, vale pensar em como essa intensidade se manifesta. Quanto o personagem tem armazenado de desejo e o quanto ele pode receber em troca por isto (ou mesmo sofrer).

Existe acúmulo de forças de desejo dentro dele (a)? Então de que forma esta “quantidade” vai se manifestar em decorrência de sua ação na situação. Se ele (a) deseja alguém ou algo do mundo exterior, a que preço isso vai se dar para ele (a). Vale dizer que a força que é compelida para fora também retorna para dentro.

O medo, por exemplo, age como força contrária ao personagem em muitos dos casos. Se alguém teme algo, projeta esse temor em algum objeto e isto pode ter efeito bumerangue, retornando com mais intensidade que antes para aquele.

Também convém atentar que a vontade como força no personagem funciona como o cavalo, enquanto que a ação consciente deste personagem pode funcionar como cavaleiro, ou seja, esta, se acionada, pode dirigi-la (o cavalo) ou ser conduzida por ela. A quantidade de forças geradas no mundo exterior e internalizadas pelo personagem também são forças intensas e poderosas a ele.

Logicamente que tudo isto passa pelo filtro do autor. Este age como baliza daquilo que irá acontecer aos seus representantes imaginários. A idéia de que autores são representantes vivos de suas criações é muito válido para se compreender esse processo dramatúrgico.

Não há como separar autor de personagem quando se escreve. Pelo menos no que diz respeito aos valores universais que um e outro estão sujeitos, como aqueles mais aclamados que são os culturais, políticos e religiosos.

Pense, por exemplo, no valor da pesquisa para o autor. Além dos trâmites que sua história exige, ele precisa conhecer bem de perto a personalidade de seus personagens, pois isto irá determinar quem sabe uma sutil barreira entre pensamentos de um e outro.

Será nesses detalhes de caráter entre autor e personagem que pode residir uma diferenciação genuína e transparente. Já não se trata de diferenciação apenas moral e, tampouco ética, mas sim de uma diferenciação geográfica entre um e outro para um saudável discernimento entre aquilo que faz parte do mundo interior de um e daquilo que faz parte do de outro. Porque os valores que cada um deles possui ou cultiva são unos, abrangentes ou totalitários.

De certa forma foi por isso que começamos falando sobre alguns pontos que podem ajudar na dramatização de situações. O processo de identificar topicamente as forças em ação, saber a sua natureza e dinamismo, bem como ter em foco a sua própria economia, ajuda a penetrar no íntimo de cada personagem e, dessa forma, propicia retratar universos prenhes de humanidade.

Neste caso, o autor fica soberano diante de seus representantes imaginários e, vendo de um ângulo meio que narcísico, sem concorrentes. Coisa de hierarquia, autor e criatura em seus respectivos lugares. São as regras do jogo. Ou pelo menos até quando os personagens não reivindicarem também o papel de autor.

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