O Japão venceu. Após meses de debates e contrariando os interesses dos representantes da sociedade civil, já é certo que o governo brasileiro escolheu o padrão japonês ISDB para implantar a TV Digital no país. O anúncio oficial está previsto para ocorrer no próximo dia 29.
Embora o governo tenha negado sistematicamente, diversos fatos nos últimos meses vinham apontando para a escolha desse padrão. O primeiro sinal concreto ocorreu em abril, quando Brasil e Japão assinaram um memorando de entendimento que estabelecia quais seriam as contrapartidas para o país caso o governo optasse pelo modelo japonês.
No dia 12, o Comitê de Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital, formado por nove ministros (Comunicações, Casa Civil, Fazenda, Desenvolvimento, Planejamento, Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Relações Exteriores), apresentou ao presidente Lula a primeira versão do texto do decreto que define as regras básicas para a transição do sistema de tv analógico para o digital.
Na última segunda-feira, uma delegação japonesa de quinze membros chegou ao Brasil para reuniões entre representantes do governo e da indústria dos dois países, assim como entidades de pesquisa brasileiras. O objetivo foi detalhar os termos do acordo de cooperação.
Impasse nas negociações – Nos pronunciamentos públicos, o governo pareceu empenhado em mostrar que a parceria será benéfica para a indústria brasileira, e não consiste apenas na importação de uma tecnologia. Lula usou a expressão “padrão nipo-brasileiro”, que definiu como sendo “uma coisa muito chique”. Já a Ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, afirmou: “Tivemos um conjunto de ações de aprofundamento do padrão japonês”, complementando: “Não pretendemos adotar o padrão, nós pretendemos estabelecer um sistema brasileiro de TV digital”.
Mas alguns impasses nas negociações desta semana deixaram a dúvida do quão benéfica essa parceria será para o país. O Brasil quis incluir no acordo o compromisso de que as inovações tecnológicas desenvolvidas pelos centros de pesquisa nacionais seriam incorporadas ao padrão japonês. Mas o Japão preferiu incluir no texto apenas as indicações do que o governo brasileiro propõe como novas tecnologias, se comprometendo a desenvolver um trabalho conjunto com o Brasil para estudar a viabilidade técnica e econômica dessas incorporações, sem especificar prazos. O país argumenta que o governo brasileiro ainda não conseguiu especificar claramente quais seriam essas inovações.
O governo brasileiro também tentou garantir que o Japão invista na instalação no país de uma fábrica de semicondutores (os chips usados nos televisores digitais), para estimular a indústria eletroeletrônica brasileira. O memorando assinado em abril mencionava apenas a continuidade de estudos de viabilidade para essa instalação, e segundo fontes do governo, após as reuniões desta semana, o Brasil já começou a aceitar que será necessário um prazo maior para que isso aconteça (até cinco anos), para que o país crie as condições necessárias.
O documento final do acordo estava previsto para ser finalizado ontem, com a expectativa de um conteúdo mais diplomático do que definidor. A indústria de televisores depende das resoluções do acordo para iniciar a implantação do novo sistema e adaptar suas fábricas. O início da operação da TV digital deve acontecer cerca de seis meses após o governo publicar o decreto, mas apenas em algumas capitais (possivelmente São Paulo e Rio de Janeiro). Mas a transição do sistema analógico para o digital em todo o país deverá levar cerca de dez anos, conforme afirmou ontem o presidente da Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), João Carlos Saad.
Uma oportunidade para democratizar a comunicação no país – A TV Digital, pelas suas características tecnológicas, poderia representar um avanço histórico na democratização da comunicação no Brasil, pois permite que no mesmo espaço onde hoje se transmite um único canal, sejam inseridos quatro novos canais, além de possibilitar que um operador de rede (e não mais as próprias emissoras) transmitam sua programação, diminuindo custos. Tudo isso permitiria a entrada de emissores de programação menores e independentes, tirando o monopólio atual da produção de conteúdo das emissoras comerciais e permitindo novas alternativas em informação e cultura.
Outra vantagem da TV Digital é a possibilidade de o televisor funcionar como uma espécie de computador, permitindo o acesso à Internet e uma interatividade que poderia ser utilizada, por exemplo, no oferecimento de serviços governamentais como pagamento de taxas e consulta ao fundo de garantia.
Globo e eleições – Mas o debate em torno da TV Digital, que vem mobilizando há meses o governo, representantes da sociedade civil e a imprensa, ignorou essas questões para servir de campo a um jogo de interesses de grandes grupos e lobbies, especialmente o setor de radiodifusão, defendido pelo próprio Ministro das Comunicações, Hélio Costa. Ex-funcionário da Rede Globo, ele realizou diversas reuniões privadas com emissoras de TV, retirando do debate os outros setores interessados.
Costa é ainda dono de emissoras comerciais de rádio, o que torna sua ocupação do cargo uma discrepância. Foi principalmente a atuação dele no processo que levou a uma reação e maior articulação dos movimentos da sociedade civil, que tentaram de diversas maneiras ampliar e democratizar o debate, e tambem adiar a decisão do governo, para que a escolha pudesse contemplar o padrão que seria realmente mais vantajoso para o país como um todo.
Mas as emissoras de TV (Globo à frente) pressionaram pela adoção do padrão japonês, já que o europeu facilita a divisão do canal em multiprogramações e a conseqüente entrada de novas emissoras.
Além disso, o padrão japonês não permite que as operadoras de telecomunicações transmitam conteúdos, o que representaria uma diminuição de renda para as emissoras. E em um ano eleitoral, dificilmente Lula iria se opor aos interesses do maior grupo de comunicação do país.
A Prof. Regina Mota, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) defende que o governo deveria ter escolhido o SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital), um modelo pesquisado e desenvolvido pela indústria nacional a pedido do próprio Lula. “É uma incongruência absoluta do governo não defender com toda clareza e transparência o modelo brasileiro. Como pode o governo fazer um decreto, financiar um projeto, e não analisar os resultados?
A impressão que se tem é que o governo não acredita e não confia na capacidade científica dos basileiros. O SBTVD é um sucesso internacional, gerou conhecimento e inovação tecnológica capaz de colocar o Brasil em posição de superioridade para desenvolver a plataforma que for boa para o país.”
A influência das eleições no processo é tão evidente que até o Ministro da Cultura Gilberto Gil se declarou a favor de adiar a escolha para 2007, para que esse fator não interferisse na decisão final.
Segundo uma matéria recente publicada pelo jornal “Folha de S. Paulo”, o governo Lula teria reproduzido uma prática dos seus antecessores e distribuído ao menos sete concessões de TV e 27 rádios educativas a fundações ligadas a políticos, assim como uma emissora de TV e dez rádios educativas a fundações ligadas a organizações religiosas. De acordo com a publicação,uma em cada três rádios foi concedida a um político. É a comunicação do país servindo como moeda de troca política.
Regina Mota usa uma metáfora para definir os problemas que o país deverá ter com o padrão japonês: “Será o mesmo que pegar um elefante e fazer com que ele funcione como um cavalo. O sistema japonês, bem como o europeu e o norte-americano não foi desenhado para a interatividade, que é o que precisamos e queremos.” Ela opina ainda sobre o reflexo dessa decisão para o setor cultural: “A área cultural, que a meu ver é a maior beneficiária de uma política pública para o SBTVD, simplesmente continuará limitada à vontade dos atores fortes e poderosos do sistema de radiodifusão que querem garantir a exclusividade do seu negócio. Deveríamos pensar a TV Digital prioritariamente como um potencial multiplicador de produtores culturais e de serviços.”
No próximo dia 29, devem chegar ao Brasil dois ministros japoneses – Toshihiro Nikai (Economia, Negócios e Indústria) e Heizo Takenaka (Interior e Comunicação) – para assinar o acordo e oficializar a escolha do padrão, provavelmente encerrando um debate onde a sociedade brasileira foi a única a não ser ouvida.
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