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TODAS AS MANHÃS DO MUNDO

VIDA DE ROTEIRISTA,  por RUBENS REWALD

Em Junho de 2015, Lawrence Wahba, um notório pesquisador da vida animal e vegetal, responsável por várias expedições marinhas, uma espécie de Jacques Cousteau brasileiro, me convidou a escrever o roteiro de um documentário de natureza chamado Todas as Manhãs do Mundo.

O projeto tinha já uma demanda bem definida, estipulada em contrato com a distribuidora FOX: seguiria o lançamento da série de TV com o mesmo título a ser lançada na emissora FOX. Tal série, dividida em cinco episódios, mostrava o amanhecer em várias partes do mundo, e como esse momento do dia reservava grandes surpresas no mundo animal e vegetal, como se fosse uma mudança de turno de trabalhadores.

Meu trabalho seria criar uma estrutura dramática para um longa, aproveitando as imagens já gravadas para a série da FOX. Minha primeira missão no projeto, portanto, foi assistir aos episódios já editados. De cara, percebi duas dificuldades para essa transposição do formato seriado para um formato de longa:

1) A série tinha como fio condutor a figura de Lawrence Wahba, narrando ele próprio as suas peripécias e dificuldades para as gravações ao amanhecer. De um certo modo, a série era mais sobre Lawrence Wahba e seu ofício de documentarista da vida animal do que propriamente sobre os amanhecers ao redor do mundo. Isso funcionava muito bem na série, mas duvidava da mesma eficácia em um longa, onde há a necessidade maior de um conflito, de uma força dramática progressiva que leva a trama adiante.

2) A questão dos amanheceres pelo mundo era um belo mote, um belo título, um belo gancho de apelo comercial, propiciava belas imagens, mas de fato não era tão presente na série. Portanto, não poderia ser usado como fio condutor no longa. No entanto, tinha que estar presente, pois, por contrato com a FOX, o título tinha que ser “Todas as Manhãs do Mundo”. Aliás, tal título é o mesmo de um longa francês de ficção de 1991, dirigido por Alain Corneau e estrelado por Gerad Depardieu.


            Tinha que pensar numa estrutura independente da série televisiva, mesmo que as imagens do filme fossem tiradas dessa série. Vale ressaltar que não estava sozinho nessa empreitada, compartilhava a criação com Rodolfo Castilho Moreno, meu sócio na produtora Confeitaria de Cinema.

Tivemos várias reuniões com Lawrence Wahba para fechar um conceito, uma diretriz dramática para o filme. Num primeiro momento, propusemos uma linha narrativa na qual um pai conta histórias da natureza a seus filhos, em um fim de semana em que acampassem juntos. Seria um pai separado da mãe e que visse pouco os filhos, e esse fim de semana seria uma aproximação entre eles e deles com a natureza. Mas tal ideia apresentava um problema de ordem prática: provavelmente implicaria em gravações, para apresentar os personagens nessa situação. Seria muito difícil situa-los tanto espacialmente quanto dramaticamente apenas utilizando uma construção sonora, sem imagens. E, como já foi dito, novas filmagens não estavam previstas no orçamento.

Então, Lawrence apresentou uma ideia: um diálogo entre Sol e Lua, o pai e a mãe, como fio condutor. A ideia poderia funcionar, mas objetei a questão do desencontro natural entre esses dois personagens, como em O Feitiço de Áquila. Como eles iriam discorrer sobre um certo animal, se ele só age de noite ou de dia. Propus então que o diálogo fosse entre o Sol e a Água, os verdadeiros Pai e Mãe do planeta Terra. A ideia foi aprovada. Temia ainda que tal estratégia dramática desse origem a um filme um tanto piegas, mas então decidimos que o público-alvo seria o infantil, ou melhor, um filme para a família, que englobasse as crianças, afinal elas adoram imagens e histórias de animais. Isso fez com que tivéssemos já uma moldura, um trilho para a criação.

Decidimos também, conjuntamente, que a questão do amanhecer não seria central na narrativa, mas sim a luta pela vida. Como se a cada manhã um novo round se iniciasse nessa luta ininterrupta pela sobrevivência. Citei um ditado africano que conhecia, o qual, de certo modo, serviu de inspiração para toda a escrita do roteiro:

“Toda manhã, nas savanas africanas, quando a gazela acorda, ela tem que sair correndo para fugir da onça. Já a onça, quando acorda, também tem que sair correndo, para caçar a gazela. Portanto, nas savanas africanas, não importa se você nasce gazela ou onça: quando acorda, você tem que sair correndo!”

Essa frase simbolizava o que queríamos mostrar (e tínhamos imagens para isso): o balé da sobrevivência, as disputas e conflitos entre o.s animais, a luta como algo natural e belo.

Decidimos também dividir o filme em prólogo, cinco partes e epílogo, cada uma situada num espaço natural diferente. E, claro, em cada parte, um conflito que levasse a trama adiante. As partes foram as seguintes:

1) Prólogo (Polo Norte) – Sol acorda após quatro meses de sono, e surge para descongelar a Água e selar o encontro deles.

2) México (deserto) – O conflito entre o sol e os animais, o cacto como o grande herói desse embate.

3) Canadá (rio e floresta) – A jornada heróica do salmão para a sua reprodução.

4) Indonésia (mar) – As incríveis espécies marinhas na convivência marcada por acordos e disputas no fundo mar.

5) África (savanas) – Os duelos sem fim entre búfalos e leões

6) Brasil (pantanal) – A luta da onça nos períodos de cheia e seca.

7) Epílogo (todos os espaços percorridos) – Água e Sol se despedem, fim da jornada.


Com a estrutura já delineada, eu e Rodolfo partimos para a escrita. A dificuldade maior seria encontrar o tom dos personagens e as situações por eles narradas. Aos poucos, o tom foi sendo achado. Serviu como inspiração os dois diretores do projeto. O diretor geral, Lawrence Wahba, e a co-diretora e montadora, Tatiana Lohmann. Lawrence é uma pessoa muito viva, inquieta, brilhante, um tanto egocêntrica e que gosta de ser o centro das atenções, ou seja, um perfeito Sol. Já Tatiana é uma pessoa delicada, maternal, mas com uma forte presença. Ou seja, a nossa Água. Portanto, me inspirava muito nesses dois modelos humanos reais para construir os diálogos entre nossos personagens. E para aumentar a identificação, Lawrence gravou as falas do Sol e Tatiana as da Água, numa gravação guia para orientar a montagem nesse momento do filme.

O desenho de ambos era muito claro: O Sol, muito exigente com os animais, sempre os colocando à prova e sempre também se arvorando de sua importância para a vida. Já a Água, mais protetora com todos os animais, os quais considera seus filhos. E, claro, entre os dois uma relação com muito humor e um certo flerte.

Eu e Rodolfo escrevíamos as cenas, mandávamos para Lawrence e Tatiana, e eles iam criticando, objetando e às vezes reconstruindo em cima do que propúnhamos. Mas o principal era que mantínhamos a criação em movimento, sempre propondo, como dramaturgos num processo colaborativo.

Assistíamos sempre algum novo corte da montagem e víamos o que funcionava ou não de nossa construção dramática.  E a partir de uma discussão conjunta, re-escrevíamos trechos que não estavam funcionando. Nessa dinâmica, chegamos quase ao fim do processo. Faltavam as gravações definitivas, que foram feitas por Ailton Graça, como o Sol e Letícia Sabatella, como a Água. Ouvimos essa gravação sobre a montagem e fizemos os últimos acertos de roteiro, mais em termos de duração e corte, do que propriamente de palavras, pois com as vozes já gravadas, não havia como mudar o texto.

E assim o filme ficou pronto. Foi primeiro exibido no festival do Rio, em 2016 e,  em Abril de 2017, estreou comercialmente. Com as primeiras exibições, ficamos felizes de perceber como o filme impacta o público infantil, nosso alvo principal. E felizes também com o processo, pois o diálogo artístico com Lawrence Wahba e Tatiana Lohmann foi muito profícuo e fluído, sendo que provavelmente a parceria pode vir a render novos projetos.

Concluindo, foi um trabalho intenso, quase de ficção, pela criação desses dois personagens, Sol e Lua, não só em termos de falas como também de traços de personalidade. O que mostra que Documentários podem ter sim roteirizações complexas e detalhistas, o que amplia de forma relevante o possível espectro de ação de um roteirista na área audiovisual.


  1. RUBENS REWALD, Professor Doutor da ECA/USP, na área de Dramaturgia Audiovisual, escreveu e dirigiu os longa-metragens SUPER NADA e CORPO. Roteirista de HOJE, de Tata Amaral, prêmio de melhor roteiro no Festival de Brasília em 2011, e autor das peças O Rei de Copas (Prêmio APCA 94) e UMBIGO (Premio Funarte de Dramaturgia 2001).

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A série VIDA DE ROTEIRISTA é composta de artigos escritos pelos associados da ABRA – uma maneira de abrir espaço para a opinião do autor roteirista sobre diversas questões pertinentes à profissão. As opiniões expressas aqui são de responsabilidade do autor e podem não representar o posicionamento oficial da associação.

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