No convite que recebi do Minc para participar deste seminário, vem proposta a seguinte questão:
“Ao contrário dos autores e intérpretes de obras musicais, os autores e intérpretes de obras audiovisuais não desfrutam do direito de remuneração pela execução pública dessa categoria de obras. Como superar esse tratamento diferenciado?”
Esta é a pergunta que me cabe. Creio que, ao apresentar a mim mesmo e à entidade que represento, já estarei começando a responder. Não sou especialista em direitos autorais, se bem que suas controvérsias não me sejam estranhas, porque me atingem diretamente nas minhas atividades profissionais.
Sou escritor, dramaturgo, roteirista. Autor de peças teatrais, contos, romance e, mais largamente, trabalhos na televisão, onde tenho estado nos últimos vinte e quatro anos, escrevendo telenovelas, minisséries, e todo tipo de dramaturgia na TVGlobo e atualmente na TVRecord.
Represento a Associação dos Roteiristas de Televisão,Cinema e Outras Mídias, AR, que também já foi conhecida pela sigla ARTV. Pelo título, dá para ver que nossa pretensão é representar todos os tipos de autores-roteiristas.
No entanto, a ordem em que, no nome, são justapostas as diversas categorias, revela a origem do núcleo de profissionais que fundou a AR. A procedência da maior parte dos fundadores da entidade é a televisão.
Mas hoje, passados oito anos, temos efetivamente em nosso quadro profissionais de todas as áreas, incluindo cinema e Internet. Somos cerca de 200 associados atualmente.
O motivo pelo qual a AR tem esta origem se explica pela realidade de que, nas últimas décadas, só a televisão, no Brasil, no ramo do espetáculo audiovisual, teve característica industrial, mantendo sob contratos de longo prazo roteiristas e diretores.
Mesmo assim, até pouco tempo atrás, ao se falar em televisão que contrata roteiristas no Brasil, se estava falando exclusivamente da TV Globo. Felizmente, este quadro tem se alterado nos últimos anos, com a entrada no mercado de produção e exibição de dramaturgia nacional da TVRecord e da Bandeirantes. Até o SBT, que tradicionalmente exibia produção importada, promete voltar à produção nacional.
Vale a pena ressaltar que foi a Internet que possibilitou a união e a organização dos autores-roteiristas. Durante décadas, estes escritores se mantiveram isolados, cada um cuidando do seu trabalho.
Este isolamento e a conseqüente falta de organização certamente estão na origem do fato apontado na questão que me foi proposta, ou seja: “os autores-roteiristas não desfrutam do direito de remuneração pela execução pública de suas obras”.
Me parece claro que os músicos desfrutam deste direito antes e acima de tudo porque se organizaram e lutaram por ele, há décadas. Enquanto nós, autores-roteiristas, precisamos curiosamente esperar o advento da Internet para nos mexermos.
Só com a internet começou a haver contato constante e sistemático entre profissionais que passam a maior parte do seu tempo isolados diante do computador. Deste, até então, inédito convívio, surgiu a idéia e a oportunidade de se formar uma associação.
No início o objetivo era fazer um núcleo de autores da TVGlobo, mas logo evoluímos para a concepção de uma entidade mais geral, que congregasse todos os autores-roteiristas, não só de televisão mas de cinema e outras mídias.
Aspecto dos mais importantes do nosso movimento foi dar aos autores-roteiristas uma dignidade intelectual, uma identidade profissional distinta da empresa para a qual trabalhavam.
Hoje somos antes de tudo autores-roteiristas independentes, dramaturgos do audiovisual e não apenas contratados ou funcionários da TVA, B, ou C. Criada a associação, começamos a discutir quais eram nossas reivindicações mais importantes.
Constituímos então várias comissões: uma para elaborar o Código de Ética da associação. A frase de abertura deste Código é o que melhor define o que é a AR: Diz lá:
“É das visões e dos sonhos dos Autores e Roteiristas que a televisão, o cinema e demais tecnologias e meios eletrônicos de difusão audiovisual existentes (e por inventar) adquirem vida. Essas visões e sonhos se materializam no texto escrito, por cuja dignidade e valorização a AR se propõe a lutar.”
Esta referência à importância decisiva e fundamental do texto escrito é extremamente oportuna. Tenho ouvido falar no produtor como um dos autores da obra audiovisual. É um completo absurdo.
Como novelista, já devo ter escrito talvez uns três mil capítulos na minha vida. Algumas vezes atrasei a entrega por alguma razão. Eu lhes digo, é uma cena digna de se ver quando a produção de uma telenovela, e também de um filme ou qualquer obra de teledramaturgia, de repente se vê sem um texto escrito que lhe indique o que fazer.
Eles ficam inteiramente perdidos, desesperados, batendo cabeça. Sem o texto escrito não acontece nada no audiovisual. E quem cria o texto escrito é o autor-roteirista. Ele sim é o autor primeiro. Como diz nosso Código de Ética, é das suas visões e dos seus sonhos que a obra audiovisual adquire vida.
Lamentavelmente, nossos escritores só agora começam a tomar consciência do seu verdadeiro poder. Só para exemplificar, vou expor algumas recomendações do nosso Código, que é baseado não apenas na experiência dos nossos autores mas também em códigos de entidades congêneres do mundo inteiro:
Todos os acordos e contratos de trabalho entre o Roteirista e o produtor (pessoa, instituição ou empresa) contratante devem ser feitos POR ESCRITO.
O Roteirista não deve trabalhar em nenhum tipo de projeto em que o contrato preveja pagamento contingencial à aprovação. No caso de dependência de financiamento, os direitos do Roteirista (sejam percentuais ou quantia determinada) devem estar clara e inequivocamente estabelecidos no contrato.
(Um parêntese. A maior parte dos produtores cinematográficos que buscam patrocínio para seus filmes, só têm nas mãos o roteiro, mais nada. E ainda acham que não têm que pagar adiantado ao autor-roteirista)
O Roteirista só deve começar a trabalhar depois de assinado o contrato, o que implica em não participar de reuniões de criação, avaliação de material, pesquisas ou qualquer outra atividade prévia ao contrato. Em caso de participação em um projeto pertencente ao produtor recomenda-se que os Roteiristas registrem por escrito suas idéias”.
E por aí vai. O mais notável nessas recomendações, aparentemente tão óbvias, é que, na prática, no cotidiano das produções ( não digo das grandes empresas), elas pouco são seguidas. Ao não serem seguidas, muitos direitos deixam de ser reconhecidos.
Direitos Autorais É do conhecimento geral que a lei brasileira reconhece três detentores dos direitos autorais na obra audiovisual Lei 9610/98:
“Art. 16º: São co-autores da obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical e o diretor.” Como se pode ver, o termo “autor-roteirista” não é explicitado na lei. Fala-se em “autor do assunto ou argumento literário”. É claro que o legislador só pode estar se referindo ao argumentista e ao roteirista. Mas foi impreciso.
Igualmente é importante que a lei explicite, da forma mais clara possível, que a obra audiovisual não é coletiva, é obra em co-autoria, porque sob a alegação de que é coletiva, os produtores estão se arvorando em autores também.
Então é comum se ver nos contratos coisas assim: “como se refere a obra elaborada por diversas pessoas, e produzida pela produtora tal, são de autoria da produtora, em consonância com os artigos 11, parágrafo único, e 17, parágrafo 2, da lei 9 mil e tal, os direitos autorais da obra, etc”
Os artigos citados da Lei de 1998 rezam o seguinte. Artigo 11, diz: “ Parágrafo único. A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta lei”.
Artigo 17, parágrafo 2: “Cabe ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra coletiva”.
Obra coletiva é aquela em que as diversas partes que a compõem se fundem num todo indivisível, tornando-se impossível identificar seus componentes.
Ora, este não é o caso da obra audiovisual, que é uma obra em co-autoria. Num filme ou numa novela, por exemplo, o roteiro é clara e perfeitamente destacável do todo. Com um mesmo roteiro se podem fazer filmes ou novelas diferentes, e mesmo publicá-lo independentemente.
Querer diluir o trabalho do autor-roteirista ou do diretor num amálgama inextricável é mais que uma distorção, é um equívoco conceitual. E no entanto isso ocorre na prática de mercado, tanto no cinema quanto na televisão.
É fundamental que os citados artigos da lei sejam extirpados ou modificados, detalhando e enumerando quais são de fato as obras coletivas, distinguindo-as das obras em co-autoria.
Outro detalhe que merece comentário é que a lei se refere apenas a “obra cinematográfica”, a “diretor cinematográfico”, esquecendo de mencionar explicitamente a “obra televisiva”, o “roteirista de televisão”, o “diretor de televisão”. Pela importância e amplitude que tem no mundo moderno, é fundamental que o processo televisivo seja incorporado aos termos da lei.
Em função disso, temos uma proposta de redação do artigo que define os autores da obra audiovisual:
“ São autores da obra audiovisual o diretor cinematográfico e o diretor televisivo, o diretor de animação; o roteirista cinematográfico e o roteirista de televisão, o roteirista de animação; e o autor da composição musical ou lítero-musical”.
Direito de Remuneração:
Outro ponto fundamental para os autores-roteiristas e também para os diretores é que a lei reconheça explicitamente o “direito de remuneração” como conseqüência do direito autoral, pela exibição da obra. Os músicos têm esse direito assegurado, mas os autores-roteiristas e diretores, ainda não.
Na televisão, há um certo reconhecimento do direito autoral do autor-roteirista. Os contratos, geralmente, prevêem pagamento de uma percentagem ao profissional nas vendas da obra para o exterior ou em reexibições.
Mas há que considerar que no Brasil as mesmas empresas são simultaneamente produtoras e exibidoras. Então esse “direito autoral” na verdade é pago pela produção. O que nós reivindicamos é que haja obrigação de pagamento de direito autoral pela exibição, independente da produção, tal como acontece nos países da Europa.
No cinema, dificilmente são previstos pagamentos de direitos autorais pela exibição. Alguns autores-roteiristas conseguem um percentual sobre os ganhos do produtor na exibição. Mas, tal como na televisão, o que reivindicamos é que sejam pagos direitos autorais para o autor-roteirista na exibição cinematográfica, também a exemplo do que ocorre na Europa.
Além disso, para proteção do autor-roteirista, na hora da assinatura do contrato, é fundamental que o “direito de remuneração” pela exibição, por dispositivo legal, seja intransferível e irrenunciável, tal como ocorre, por exemplo, na legislação espanhola. Só os autores da obra audiovisual definidos em lei poderiam recebê-los.
Direitos Morais:
A lei define como direitos morais dos autores dispositivos como o de reivindicar a qualquer momento a autoria da obra, o de ter seu nome indicado como autor, o de conservar a obra inédita, o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada, etc.
No geral, concordamos com tudo que a lei dispõe sobre os direitos morais, exceto o artigo 25, que questionamos. O artigo diz: “Cabe exclusivamente ao diretor o exercício dos direitos morais sobre a obra audiovisual”.
Neste particular, o legislador seguiu a tradição que, ao longo do século XX, erigiu o diretor como o senhor quase absoluto no cinema e, por extensão, no audiovisual. No entanto, a realidade nem sempre é esta. Não se pode falar em preponderância do diretor na obra televisiva, por exemplo. Quem manda, quem tem a última palavra numa telenovela é o autor-roteirista, sem a menor dúvida.
Mesmo no cinema, é preciso abrir a possibilidade de que o os direitos morais pertençam ao autor-roteirista, porque muitas vezes um filme pouco mais é do que seu roteiro.
Nossa proposta não é que os direitos morais passem a pertencer ao autor-roteirista, em detrimento do diretor. Achamos que a lei deve prever que este privilégio deva ser obrigatoriamente pactuado entre as partes, na elaboração do contrato.
Desta forma, primeiro se torna obrigatório, inelutável mesmo, a assinatura de um contrato prévio ; além disso, fica definitivamente excluída a possibilidade de uma pessoa jurídica reivindicá-los, porque o direito moral é pessoal e inalienável ; também fica garantida maior força aos autores na hora de negociar contratos, onde o costume tem sido a cessão total de todos os direitos e o poder do contratante é infinitamente maior que o dos autores.
A arrecadação dos direitos autorais.
Há anos a AR vem se empenhando em criar uma arrecadadora de direitos autorais no audiovisual, visto que a entidade que poderia e deveria realizar este trabalho, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, encontra-se sem condições de operar neste campo.
Nos últimos anos, participamos de inúmeros seminários com objetivo de criar uma arrecadadora e chegamos mesmo a pensar em nos tornarmos nós próprios uma arrecadadora.
Modificamos nossos estatutos com este objetivo. Hoje, juridicamente, podemos funcionar como uma sociedade de gestão coletiva, mas na prática logo verificamos que este era um sonho quase impossível. Não temos estrutura funcional para tanto.
Depois disso, participamos, junto com algumas entidades do audiovisual, como a Associação Paulista de Cineastas, a Associação Brasileira de Cineastas e outras, da tentativa de criar a tão sonhada sociedade gestora de direitos coletivos.
Chegamos a cumprir as exigências burocráticas para pedir filiação à CISAC, órgão internacional que congrega todas as arrecadadoras, mas por razões diversas, a iniciativa acabou não vingando.
Finalizando, nós da Associação dos Roteiristas consideramos que, estabelecido legalmente o direito de remuneração ao autor-roteirista pela exibição de suas obras, é da máxima importância criarmos uma sociedade de gestão coletiva dos direitos autorais, em caráter privado, unindo dramaturgos e diretores.
Não descartamos a função fiscalizadora que eventualmente o Estado possa exercer, mas julgamos que a arrecadação e distribuição dos direitos é tarefa particular e privada.
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