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Os Fatos que Criam uma História

Alguns bons procedimentos marcam efetivamente a descoberta de um argumento dramático de uma história interessante.

Se você já tem um personagem com o qual se basear para querer bolar uma história, vale pensar em um fato psicológico que se vincule a ele. A idéia de trabalhar o universo do personagem remonta desde tempos da Grécia Antiga. Investir o nosso olhar para dentro de um personagem, ilumina certos aspectos que ainda podem estar encobertos para a geração de fatos dessa história.

Segundo Henry James [1] , a natureza do personagem literário se mostra como a “determinação de um incidente”, assim como o “incidente se dá pela iluminação de um personagem” [2] . Tomando esta linha de pensamento, pode-se dizer que são os recursos internos de um personagem – pensamentos, sentimentos, intenções, atitudes e as percepções sensoriais – que ganham luzes e se mostram de dentro do personagem em um dado instante, por intermédio do qual se reflete um incidente, nas palavras de James, o incidente se determina.

É como se uma coisa estivesse atrelada à outra. Personagem e história guardam tão estreita comunhão em um processo literário-criativo como a água e o ar em um processo cósmico da natureza.

Ora, se é tão transparente assim como a água tomar o personagem a partir da determinação de um incidente, isto implica supor que ocorra, ao menos, uma forma de relacionamento, pois, segundo ainda James, “qualquer relacionamento entre os personagens deve iluminar aspectos diferentes do personagem principal” [3] , uma vez que este protagonista estaria ocupando o centro de um círculo. Nesse círculo, rodeando o personagem principal, estariam os personagens com quem ele ou ela interage.

Desse modo então “nasce uma ordem de fatos que apresenta características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem” [4] .

Nasce, pois, um fato social que, somado ao processo de iluminação de um personagem numa determinada incidência – seja esta por via interna de suas sensações psicológicas e morais, ou seja por via externa de seus relacionamentos – pode-se aduzir que se atesta no autor a certeza de estar trafegando pela concretização ficcional de fatos psicológicos, morais e sociais, com os quais ele poderá contextualizar um argumento cujo eixo de ação seja operado por ao menos um protagonista.

Neste processo, uma boa premissa seria tomar um dado personagem a partir de um ângulo psicológico, isto é, a partir de seu condicionamento psicológico, para, então, gerarmos um fato psicológico relativo a sua ação momentânea. E isto tem significância porque se ergue uma outra qualidade neste processo: o aparecimento do arquétipo comportamental.

É que um mesmo personagem pode manifestar aspectos de vários tipos de personalidade em fatos psicológicos distintos. Por exemplo, uma hipotética protagonista em sua história pode, num dado momento, manifestar sua necessidade de doar-se para ser amada, todavia, em outro, pode ser uma pessoa desconfiada e vigilante, olhando atrás das intenções ocultas de seu amante. Só nessa mudança, ela manifestou dois arquétipos psicológicos distintos.

No entanto, normalmente, só se toma conhecimento dessa ocorrência quando o fato já se consumou, isto é, quando ele já se tornou manifesto e agregou as qualidades dessas mudanças arquetípicas que se revelam em uma determinada realidade vivenciada por um personagem numa história.

O personagem, neste caso, é o centro sobre o qual deita-se um olhar arguto, comumente radiográfico, de um autor onisciente, cuja intenção, via de regra, é a de forjar a manifestação psicológica e moral de seu protagonista, bem como a de gerar relacionamentos com ele de forma a iluminá-lo e, não raro, de revelar suas opressões.

Interessante notar que a posição do criador conscientizado de sua criação tem procedência na exata percepção do conceito como uma forma representativa do objeto criado. Ao apontar a imagem do objeto criado na sua representação mental, de acordo com a decodificação que faz para o conceito de um fato psicológico, moral ou social, o criador da situação, ou do fato propriamente dito, projeta um contexto representativo que se traduz num fato literário, coisa que acabará por determinar o conteúdo de uma provável história, se, claro está, isso for objetivado por ele.

Em outras palavras, se um autor tomar como ponto de partida um fato psicológico alusivo à sua criação literária – fato este tomado pelo sujeito a priori de sua criação em si mesma -, isto é, de acordo com o conhecimento que ele tem de sua representação mental acerca do fato assim mesmo como ele se constitui, o autor estará exercitando, digamos que teatralmente, o sentido de “tomar-se na pele de outrem”, com o pretexto de perceber as emoções que podem “exalar” do personagem focalizado por sua atenção consciente.

Neste caso, queremos nos referir à “projeção visionária” do autor realizando o milagre do aparecimento da história. E uma boa história surge como metáfora daquilo que se pensa e sente sobre alguma condição humana, num processo voluntário próprio de uma simbologia que cria e revela mitos e aspectos reconhecíveis no âmbito da personalidade, em forma de fatos psicológicos, morais e sociais.

Como mesmo disse, Joseph Campbell [5] em sua célebre obra de mapeamento mitológico The Power of Mith [6] : “trabalhar com o mito é transmitir metáforas de aspectos de nossos eus misteriosos”. Mas, vale dizer que, normalmente, o autor faz isso de forma inconsciente, e o que estamos tentando mostrar aqui é o foco da consciência do autor quando põe a sua criatividade a serviço de sua percepção conceitual e a transforma em objeto literário, o que não deixa de ser um jeito próprio de auto-revelar-se misteriosamente.

Para atestar o funcionamento dessa auto-revelação autoral consciente, escolhemos uma situação que pode apresentar relevância pelo fato de ter sido tomado, aprioristicamente, um foco sobre o interior de um personagem aleatório, respeitando, claro está, um determinado processo criativo como forma de iluminar este personagem em algum aspecto psicológico próprio – aqui o tipo de personalidade psicológica deste personagem inclina-se ao “galanteio romântico” -, e, com isso, formar um fato de mesma natureza, literariamente falando, que assim poderíamos representar de modo sumário:

“Bernardes escrevia um e-mail para Eduarda. Não sabia no que ia dar, pois mal a conhecia. Sentia o coração acelerar-se enquanto pensava na possibilidade de ela ser aquela por quem poderia dar tudo de si. Típica espera ansiosa. Será que ela tinha aqueles olhos verdes iguais ao do brilho da pedra preciosa que ele estava pensando em lhe comprar?

Os cabelos de Eduarda seriam dourados e escorridos até os ombros pequenos, do tipo mignon. Já podia até sentir o aroma floral exalando da maciez daqueles cabelos. Eduarda era uma Vênus brilhante! Mas será que ela ia compreender bem aquela mensagem? Era apenas uma amizade, e ele, Bernardes, queria mais do que isso. Ou pelo menos esperava que fosse.

Uma leve euforia elevou as batidas do seu coração enquanto redigia outra mensagem para ela. Era uma espécie de ante-sala do prazer de uma conquista preste a se concretizar. Mas, e se ela fosse casada? Ela bem que poderia não ter dito nada de sua vida por algum motivo pessoal. Por instantes, Bernardes viu o seu desejo diluir-se numa atmosfera de temor. Quando então viu uma nova mensagem chegar a sua caixa eletrônica. Era ela!”

Temos aqui esboçado um fato psicológico relativo a Bernardes, no caso, o provável protagonista dessa história. O que incide aqui é a própria iluminação deste personagem, enquanto escreve, deseja, sente e pensa coisas sobre Eduarda. Sua psicologia neste instante está sendo “fotografada”, e, aqui, este breve acontecimento, mesmo sendo psicológico, poderia integrar, se se quisesse, um argumento dramático relativo à sua história como um todo.

Mas poderíamos também expandir mais o contexto da personalidade desse personagem buscando elementos particulares de sua conduta moral, o que daria azo a um fato moral, alterando, assim, seu tipo de personalidade psicológica que poderia ser descrito como um modo “depressivo-paranóico” de ver uma realidade já antes experimentada. Suponha então que a partir do temor que sentiu Bernardes um novo elemento surja nele: a culpa.

“Bernardes recebe a resposta de Eduarda. Aquilo que temia torna-se real: ela era casada, e muito bem casada. Quem lhe responde fora o próprio marido dela. Momentaneamente, Bernardes cai em depressão sentindo uma culpa muito grande por querer sempre uma coisa impossível. Ele devia se conformar, não de agora, mas desde muito tempo atrás. Não havia nascido mulher nenhuma para ele e ponto final. O que ele sonhara não existia mais no mundo. Havia acabado.

Novos modelos de relacionamento continham características que se chocavam contra a sua ideologia amorosa. Por que sofrer por isto? Eduarda nem ao menos ele conhecia de perto! Pegou o telefone e ligou para seu irmão. Bernardes não se sentia bem para falar sobre isso com Maurício.”O que ele vai me dizer eu já sei! Mas eu preciso falar com alguém. E só o meu irmão me ouve nesse assunto”. Como poderia ser tão frouxo assim? Um cara de trinta e dois anos que só pensava em encontrar sua Cinderela para casar. Isso não podia continuar.”

Eis o fato moral. Moral dentro do contexto criado para a figura ou personalidade de Bernardes, com o detalhe da “coerção” exterior implícita aqui devido à resposta do marido de Eduarda. Segundo o que se descreve acima, Bernardes sente-se culpado por querer “coisas sempre impossíveis” para si e se autopune por antecedência (porque sabe que não vai se sentir bem em falar disso com Maurício, seu irmão), mas, mesmo assim, quer vê-lo, o que pressupõe um provável relacionamento pelo qual “iluminaremos” outro aspecto do caráter de Bernardes. Neste caso, estaríamos aqui diante de um outro fato, seguramente.

Mas, se ainda quiséssemos expandir as circunstâncias dessa história e buscar uma trama relativa ao nosso protagonista Bernardes, poderíamos criar um fato social, externo, coercitivo e relevante ao personagem. Ei-lo:

“Na escola onde leciona Bernardes, Mateus, o marido de Eduarda, é diretor. Só que Bernardes não sabe que ele é o marido de Eduarda, porque até ontem não sabia que ela era casada. E Mateus está contando para a professora Olga o que havia acontecido na caixa de e-mail de Eduarda. Dizia ele então que estava desconfiado que sua mulher o traía com o Amante Virtual.

Ambos acabam esticando a conversa e falam sobre o advento da Internet e as coisas novas que ela trouxe a todos. Olga, no entanto, acha que Mateus devia investigar o caso suspeito. É quando então Bernardes chega à sala. E os encontra ali conversando sobre Eduarda e o suposto Amante Virtual. Bernardes ouve e até participa do assunto. No entanto, prefere manter a discrição a fim de tentar articular um novo plano a partir disso. Será que vai voltar a procurar Eduarda e lhe revelar o que descobriu?”

Dá para arriscar um palpite? Bom, independente de Bernardes procurar ou não procurar Eduarda, estabelecemos uma nova situação dramática a qual chamamos de fato social, só que de modo interligado ao protagonista da história. Quer dizer, um acontecimento fora da ação direta do personagem, no entanto coligado a ele para fins de conveniências dramáticas.

Em suma, os fatos psicológicos, morais e sociais quando usados com o olhar autoral consciente constituem-se em uma ferramenta que ajuda a expandir os acontecimentos e tramar uma história. Escrever é sempre uma descoberta. A partir de fatos associados a um personagem central podemos gerar as situações principais de defesa de uma história.

Pode-se também, se se quiser, gerar fatos psicológicos, morais e sociais a partir de personagens secundários da história. Mas, neste caso, convém cuidar para não se perder nas muitas tramas que porventura daí apareçam para a história. Em resumo, achamos que ter um personagem central e criar fatos para ele caracteriza a necessidade funcional de se encontrar o conteúdo de uma história.

Depois vem a forma convencional a que chamam de Argumento Dramático no qual estarão ordenados os fatos dessa história. De forma consciente e planejada, esse processo como um todo se torna uma exploração da criatividade que convida o leitor assim: “você está pronto para ir aos fatos agora?”

BIBLIOGRAFIA

  1. FIELD, Syd – “4 Roteiros”, São Paulo, Objetiva, 1997.

  2. CASTRO, Ana Maria de; DIAS, Edmundo Fernandes, “Introdução ao Pensamento Sociológico”, Rio de Janeiro, Eldorado, 1981.

  3. VOGLER, Christopher, “A Jornada do Escritor”, Rio de Janeiro, Ampersand, 1992.

  4. CAMPBELL , Joseph, “The Power of Mith”, NY, Doubleday.

[1] Escritor americano (1843-1916) [2] Syd Field, 4 Roteiros, p. 44

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