Caros colegas da ABRA,
este é um “texto-convite”, uma espécie de apresentação de minha pesquisa de Mestrado, concluída há cerca de um ano.
Espero que apreciem a leitura e, deste modo, espero que juntos possamos construir mais uma parte da ponte “academia-mercado” que às vezes parece tão frágil e pouco percorrida.
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por Janaína Fischer *
A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço” (LAROSSA, 2004, p.160).
A experiência que “me aconteceu” – trabalhar como roteirista de uma série do Núcleo Guel Arraes (“Doce de Mãe”[1], escrita em 2013) – fomentou a vontade de “parar para pensar”, “suspender o automatismo da ação”, “escutar os outros” e “demorar-se nos detalhes”. Pouco tempo antes da escrita da série, eu havia feito um curso com a roteirista Adriana Falcão, chamado “A voz dos personagens”, tratando sobre a escrita de diálogos de cena. Identifiquei-me com Adriana na preferência pela escrita dos diálogos e, pela primeira vez, entendi que era possível “demorar-se nos detalhes” desta experiência e pensar os diálogos como uma parte específica dentro da criação das cenas.
Em minha trajetória profissional, depois de anos exercendo a função de Assistente de Direção, passei a Roteirista, desenvolvendo trabalhos com a Casa de Cinema de Porto Alegre. A partir deste início de experiência e identificando-me mais com a escrita de comédia, sempre tive a inquietação de questionar o que assisto e o que escrevo, refletir sobre o que é “bom” e o que não é, o que é engraçado, o que “funciona” e o que não atinge seu objetivo. A escritora americana Anne Lamott diz que “escrever é reescrever” (LAMOTT, 2011), ou seja, refletir sobre a prática, encontrar outros caminhos. Foi neste sentido que propus este estudo que tornou-se minha dissertação de mestrado: ao colocar-me como partícula inquieta dentro do processo de criação, na intenção de aperfeiçoar a prática, de resolver algumas dúvidas e encontrar outras.
Iniciei meu projeto de pesquisa de Mestrado interessada em analisar isoladamente os roteiros dos programas produzidos pelo Núcleo Guel Arraes (NGA), , na tentativa de deter o olhar “apenas” sobre os diálogos escritos neles. A escolha do objeto – diálogos da série “A Comédia da Vida Privada” – surgiu naturalmente, ao procurar, entre os programas do NGA, aquele com o qual mais me identificava, em que percebia características de qualidade (ainda segundo meus critérios pessoais) e, ao mesmo tempo, do qual mantinha certa distância como realizadora. Segundo Jorge Furtado, um roteirista deve “contar histórias que lhe interessam, falar sobre o que conhece ou tem curiosidade a respeito.” (FURTADO, 2012[2]). Pergunto: poderia esta ser uma premissa interessante também para o pesquisador? Penso que reunir interesse pessoal, curiosidade profissional e conhecimento (em formação) a respeito do tema foi a combinação que garantiu prazer e potência instigadora à pesquisa que aqui apresento neste “texto-convite” para que o leitor, no caso de aceitá-lo, navegue pela dissertação completa[3].
Entre 1995 e 1997, a Rede Globo de Televisão produziu e transmitiu a série “A Comédia da Vida Privada”, inicialmente baseada em crônicas do escritor Luis Fernando Verissimo que retratava, com humor, pequenas histórias sobre o cotidiano da classe média brasileira. A série foi condecorada com o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) em 1995 e, na mesma época, eleita o melhor programa de séries e seriados da televisão brasileira pela agência Tv Press.
Segundo o diretor Guel Arraes, o programa exigia um cuidado prévio com o texto, que levava muito mais tempo para ser escrito que a média dos roteiros de novelas e seriados. Por outro lado, a gravação podia levar apenas dois dias. Para ele, a sofisticação estava no roteiro, não na produção.[4]
Ao elaborar o projeto de pesquisa, algumas perguntas iniciais surgiram, tais como: na escrita de diálogos para roteiros de séries de televisão brasileiras, como o humor atinge seu objetivo? A partir deste que poderia ser considerado um exemplo eficiente de comédia para televisão brasileira, é possível estabelecer parâmetros para a escrita de outros diálogos com a mesma finalidade? E o que é um “exemplo eficiente”? Qual a função do diálogo dentro das cenas de comédia? Ao longo da pesquisa, as perguntas ampliaram-se, principalmente pela percepção de que seria necessário refletir sobre o “macro” para compreender o “micro”, por exemplo: quem escreve estes diálogos? Quais suas referências? Quais suas trajetórias? De que “lugar” escrevem? Em que cultura se inserem? A eficiência destes diálogos tem relação com o contexto em que são escritos e transmitidos?
Assim, à luz dos Estudos Culturais (utilizando como inspiração o Circuito Cultural que o autor Richard Johnson propõe) este estudo, aliado a teorias narrativas e de roteiro – em combinação com ferramentas da Análise Fílmica – pretendeu compreender “processo e estrutura” nos diálogos dos roteiros do Núcleo Guel Arraes. No decorrer da pesquisa percebemos que o que nos interessava era isolar o diálogo de outros elementos “da cena”, como enquadramento, atuação e montagem, por exemplo, mas não de isolá-lo do que lhe constitui como “caminho de criação”. O que propusemos foi conhecer seu trajeto criativo desde a ideia até a escrita, e não depois – da escrita até sua exibição. Para ter acesso aos diálogos, foram transcritos trechos de doze episódios da série disponíveis na internet[5]. Foi realizada uma entrevista com Guel Arraes, além da leitura de bibliografia a respeito dos temas.
A pesquisa percorreu três pontos do Circuito Cultural de Johnson: “culturas vividas, autor e texto”. Por culturas vividas entende-se o contexto histórico-social tanto de quem produz quanto de quem consome o produto cultural em questão (neste caso, o ambiente sócio-político-cultural do Brasil na década de 1990). Como “autor” entende-se “quem” escreve e “de onde” escreve, ou seja, trata tanto de biografia quanto de condições de produção. A pesquisa foca na pessoa de Guel Arraes, mas não deixa de mencionar outros autores que compõem o grupo criativo do Núcleo. A seguir, a pesquisa passa pelo elemento “texto”, onde se traçam as principais características da série. Quando se fala que o trajeto “passa” por um ou outro elemento do circuito, vale lembrar que o importante neste tipo de análise é a relação entre estes elementos e não a leitura de cada um como isolado do outro.
Finalmente, na análise propriamente dita dos trechos de diálogo selecionados, são apresentadas as categorias de análise (criadas pela pesquisa): 1. Repetição (inspirada no “mecânico sobreposto ao vivo”, segundo Henri Bergson); 2. Inversão (inclui “Transposição de tom” e “Metáfora compreendida em seu sentido não figurado”); 3. Quiprocó ou Interferência nas séries; 4. Inteligência em oposição à emoção; 5. Drama na comédia; 6. Dimensão ética; e 7. Construção da agenda do personagem. A partir destas categorias, se apresenta um olhar que tenta perceber os elementos de comicidade presentes no texto, assim como estabelecer relações entre “texto e contexto”. Desta maneira pretendeu-se buscar relações entre a formação dos roteiristas de “A Comédia da Vida Privada” (especialmente Guel Arraes), os padrões culturais de seu tempo e as características dos diálogos que escrevem em seus roteiros.
Num exercício de resumir em forma de perguntas o que tentamos investigar nesta pesquisa, apontamos: 1) existe um “jeito Guel Arraes” de escrever diálogos para comédias de televisão? 2) é possível estabelecer parâmetros para a escrita de diálogos em outros roteiros de comédia? 3) é possível identificar, na escrita dos roteiros do Núcleo Guel Arraes, as características do tempo e da cultura que os constituem?
Os diálogos analisados possuem características narratológicas próprias e a principal delas, a nosso ver, é a de “fazer a história andar”. Esta já poderia ser uma das primeiras “respostas” a nossa questão sobre o “jeito Guel Arraes” de escrever: as falas apresentadas são eficientes no sentido de contribuírem para o andamento da trama. E esta “contribuição” ainda possui uma camada a mais em sua elaboração, pois não o faz de maneira “direta”, existe um “pensamento” por trás de cada fala escrita. Esta elaboração (este “pensamento”) parece ter dois eixos: um olhar atento em direção à cultura que o constitui, e uma ousadia típica do humor que mescla o popular e o erudito de maneira sofisticada. Já citamos Guel Arraes quando ele diz que “a sofisticação estava no texto”[6], e este termo parece encaixar-se bem no que percebemos quanto ao “jeito Guel Arraes” que buscamos conhecer. Sofisticar, segundo o dicionário, significa “requintar”, “tornar mais eficiente pela incorporação de meios mais complexos”[7]. Foi o que percebemos ao ler e reler os diálogos selecionados: muitas camadas de elaboracão. A grande maioria das falas têm diferentes níveis de preocupação: com a forma (a escolha das palavras), com o ritmo, com a apresentação dos personagens (“agenda”) e com a temática do episódio que, na série analisada, é significativa de um tempo e de um local sociocultural.
É possível, portanto, identificar traços de um tempo e de um espaço socioculturais nos diálogos de ACVP. O Núcleo Guel Arraes, a nosso ver, tem a proposta de apresentar o Brasil do final dos anos 1990 aos brasileiros e a quem quiser conhecê-lo. O grupo criativo do Núcleo compartilha uma “experiência de ser brasileiro” com seus espectadores – dividem as mesmas “culturas vividas”. A partir do que foi apontado pela pesquisa, parece existir um posicionamento por parte do Núcleo Guel Arraes, a partir do qual ele “comunica um Brasil” aos espectadores da Rede Globo de Televisão. É o posicionamento de legitimar os “objetos menores” (Grimson e Cagiano, 2010) usando-os como temática principal de seus programas. É o posicionamento de – com as diversas camadas de apreensão que seus diálogos permitem – discutir os papéis hegemônicos culturalmente arraigados na cultura brasileira: as relações conjugais, o machismo, a ética, o conflito de gerações e o próprio poder da televisão na sociedade. E é também, o posicionamento de dizer tudo isso com humor.
A técnica isolada pode ter efeito imediato de produzir riso no espectador. No entanto, o que parece diferenciar ACVP é sua “costura” entre a técnica e os elementos da cultura brasileira que permeiam seus diálogos, tornando-se um produto audiovisual que permanece no tempo.
Defensora das possibilidades criativas da televisão, tive meus argumentos reforçados para seguir acreditando na ideia de que se pode sofisticar a programação sem perder o interesse do telespectador. Na tentativa de contribuir para uma maior visibilidade dos “fios de marionete” que movimentam a comédia – propostos por Bergson – assim como de conhecer os “filtros fabulosos da especulação da forma e da estética” – como nos diz Duel –, esperamos que a leitura contribua para que possamos escrever (e rir) mais e melhor através da televisão brasileira.
Referências bibliográficas:
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DRIESSEN, Henk. Humor, riso e o campo: reflexões da antropologia. In: BREMMER, Jan e ROODENBURG, Herman (orgs). Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000. (pp. 251-276)
DUEL, María José. La manzana anónima de Newton y lo que de verdad expresan las historias. In: Escritura Creativa: Cuaderno de Ideas. Madrid,: Fuentetaja, 2007. (pp – 83-101)
ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Circuitos de cultura/circuitos de comunicação: um protocolo analítico de integração da produção e da recepção. Comunicação, mídia e consumo. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo ESPM, nov/2007, 11 (4): 115-135.
FALCÃO, Adriana. Pensamentos soltos que não têm a pretensão de serem teorias, mas observacões feitas a partir de experiências variadas. Material distribuído pela autora por ocasião do curso “A Voz do Personagem”. realizado de 27 a 30 de junho de 2011, total de 10 horas/aula. Promovido por B_arco Centro Cultural, São Paulo/SP.
FURTADO, Jorge. (Entrevista) In: Palavra em Movimento – filmes e roteiros de Jorge Furtado. Catálogo da exposição “Palavra em Movimento” (09 a 21 de dezembro 2014, Caixa Cultural, Rio de Janeiro). Realização e Produção: Sobretudo Produção, 2014.
GRIMSON, Alejandro. Los límites de la cultura. Críticas de las teorias de la identidad. Buenos Aires: Siglo XXI, 2011.
LAMOTT, Anne. Palavra por Palavra. Editora Sextante. Rio de Janeiro, 2011.
LARROSA, Jorge. Linguagem e Educação depois de Babel. Autêntica. Belo Horizonte, 2004.
[1] “Doce de Mãe” é uma série em 13 episódios, produzida pela Casa de Cinema de Porto Alegre em parceria com a Rede Globo de Televisão. A redação final dos roteiros é de Jorge Furtado. A série venceu o prêmio Emmy Internacional® como “melhor série de comédia” no ano de 2015.
[2] Anotações pessoais a partir de curso de roteiro ministrado por Jorge Furtado. Curso realizado de 21 a 30 de maio de 2012, em Porto Alegre. Total de 15 horas/aula. Promovido por Casa de Cinema de Porto Alegre. Porto Alegre/RS.
[3] Disponível em: <http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/8329>
[4] <http://pt.wikipedia.org/wiki/Com%C3%A9dia_da_Vida_Privada> (acesso em 22/09/13)
[5] Todos os episódios da série estão disponíveis online. Os sites dos 12 que foram utilizados por esta pesquisa estão indicados no apêndice do trabalho completo. Os critérios de escolha destes episódios estão explicitados no capítulo que trata da metodologia.
[6] <http://pt.wikipedia.org/wiki/Com%C3%A9dia_da_Vida_Privada> (acesso em 22/09/13)
[7] https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=sofisticar+significado
* Janaina Fischer é roteirista de tv e cinema. Nasceu em Novo Hamburgo/RS e atualmente vive e trabalha em São Paulo/SP. Bacharel em Publicidade (UFRGS), tem Especialização em Cinema (UNISINOS) e Mestrado em Comunicação (PUCRS). Já atuou como Diretora de Produção e Continuísta em diversas séries e programas de televisão, mas sua principal função, antes de começar como Roteirista e Diretora, foi como 1ª Assistente de Direção de filmes e séries como: “Saneamento Básico, o filme”, “O Mercado de Notícias” e “Real Beleza” (todos com direção de Jorge Furtado); “Antes que o Mundo Acabe” (Ana Luiza Azevedo), “Ainda Orangotangos” (Gustavo Spolidoro) e “Os Famosos e os Duendes da Morte (Esmir Filho). Desde 2012 passou a trabalhar como Roteirista e Diretora. Escreveu séries como “Doce de Mãe” (2013, Rede Globo – vencedora do Emmy Internacional de Melhor série cômica 2015), “Vida de República” (2012, Canal Futura) e “Fora de Quadro” (2015, Canal Brasil) e nestas duas últimas também exerceu a função de Diretora. Participou do Núcleo de Roteiros da Casa de Cinema de Porto Alegre e atualmente desenvolve roteiros de séries e longas em produtoras como Querosene Filmes e Dogs Can Fly.
Link para seu canal no Vimeo: https://vimeo.com/channels/959648
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A série VIDA DE ROTEIRISTA é composta de artigos escritos pelos associados da ABRA – uma maneira de abrir espaço para a opinião do autor roteirista sobre diversas questões pertinentes à profissão. As opiniões expressas aqui são de responsabilidade do autor e podem não representar o posicionamento oficial da associação.
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