O ano passado fiz o workshop do teórico inglês de roteiro Phil Parker e gostei médio. Tem coisas legais no que ele fala, gostei da “catalogação” que ele faz dos filmes pelo gênero (que não são aqueles que dividem os filmes nas prateleiras das locadoras) e ele em si é uma figura simpática. O que eu não gostei foi das negações dele, especialmente pelo como ele as fez.
Primeiro, claro, ele desdenhou do paradigma do Syd Field, mas isso eu já esperava. Estranho mesmo foi que, apesar de ter desdenhado disso, num dado momento pra ilustrar alguma coisa ele criou uma história de uma linha azul, que cruzava com outra, uma historinha curtíssima, talvez desse um minuto na tela. Mas no entanto essa história, mesmo minúscula como era, também se encaixava à perfeição no paradigma do Syd Field. Bom, mas isso eu também já esperava.
Negou a idéia de que uma história tenha sempre um personagem central. Não lembro agora qual foi o exemplo que ele deu de uma história sem herói, mas de duas uma: ou o exemplo era furado ou, ufa, achou 1 (um) exemplo, contra 150.000.000 de outros exemplos onde a trama se desenrola em cima de um personagem.
Legal como curiosidade, insípido como ensinamento. Fora que a tal história que ele contou, que tinha um minuto e apenas dois personagens, ele a chamou de “história da linha azul”. Ora, por que da linha azul, e não por exemplo “história das linhas”? Bom, porque claramente a linha azul era quem conduzia a história, era portanto seu personagem principal.
Daí na cena mais dramática do workshop ele negou também que toda a trama apresente o seu herói logo no começo da história. E aí foi meio constrangedor porque, pra provar essa sua teoria, ele usou como exemplo o filme “O Senhor dos Anéis”, que começa com a história não do Senhor dos Anéis, mas sim do anel. Inclusive projetou esses 10 ou 15 minutos iniciais do filme onde não vemos o Senhor dos Anéis, conhecemos apenas a história do anel.
Bom, aqui ele confundiu prólogo com prefácio. No intervalo falei isso pra ele, que prefácio é um momento da obra que antecede a história em si, é um recurso usado quando o autor sente a necessidade de explicar alguma coisa pro leitor (ou pro expectador) antes da história mesmo começar, alguma informação que ele julgue importante a audiência ter pra melhor compreensão da história que será contada.
Usei de exemplo o livro Laranja Mecânica, onde não tem prefácio, mas há no final um glossário com a “tradução” dos neologismos todos criados pela gangue. Falei pra ele (e claro que ele concordou) que aquele glossário até faz parte do livro, mas não faz parte da história, que aquilo era parte da narrativa até, mas não da trama. Disse que tal qual um glossário, um prefácio também não faz parte da história que será contada, mas que na verdade é um recurso de narrativa.
O autor, depois que decidiu que era importante contar a história do anel, resolveu fazer isso através do prefácio. Podia ter preferido num momento qualquer do filme fazer aparecer um personagem que soubesse daquela história e contasse para os outros (e claro, para o público) como foi a gênese daquele anel. Ou poderia muito bem ter decidido não contar nada, deixar que as pessoas criassem a mística que quisessem sobre o anel, bastando que o público entendesse que havia uma magia naquele objeto.
Voltei para o começo da conversa com ele e lhe disse que se é verdade mesmo que não obrigatoriamente uma história precisa introduzir seu herói logo no começo, que ele deveria procurar um outro exemplo, porque aquele estava furado. Ou melhor, aquele era um contra-exemplo do que ele estava defendendo, uma vez que acabado o prefácio, na primeiríssima cena logo do começo da história vemos… o Senhor dos Anéis. Aquela obra confirma a necessidade de apresentação do herói logo no começo da história (ainda que não no começo do filme).
Vi pelos seus olhos que ele balançou um pouco com essa contestação que fiz, mas ele não deu o braço a torcer. O máximo que fez foi uma esquiva, dizendo que “depois pensaria melhor nisso”.
Tudo ia bem, ou melhor, tudo ia mal até que teve um plot point na minha história daquele curso com Phil Parker.
Eu já não estava nem mais participando muito do workshop, já estava lá mais como ouvinte, com meu caderninho na mão só esperando ele fazer suas negações de praxe – aquelas que fazem todos que acham que os preceitos clássicos são prescindíveis – enquanto eu ia ticando uma a uma. Até que num dado momento ele negou mais uma coisa, mais um desses pinos estruturais do drama. Eu cheguei a colocar a ponta da caneta do lado do item na lista, mas a mão não correu rápido pra direita traçando um “v” esticado como eu esperava.
O que ele disse foi que não obrigatoriamente o herói muda durante a trama, não obrigatoriamente aquela situação que assistimos ao longo de 2 horas causa alguma mudança na personalidade do herói (foi nesse momento que coloquei a ponta da caneta no papel, pronto pra ticar mais esse item). E daí ele deu como exemplo filmes que são feitos em série, como por exemplo os do 007 e sentenciou: “James Bond não muda”. Foi aí que minha caneta travou, porque o exemplo era bom.
Fiquei meio sem graça, porque já tinha me acostumado a “estar sempre certo” naquele embate imaginário com ele, mas não perdi o rebolado. Um workshop a gente faz pra aprender coisas e, provando que aprendi, disse pra mim mesmo o que tinha aprendido com ele horas antes: “depois eu penso melhor nisso”.
Nunca mais vi Phil Parker que voltou pra Inglaterra, mas me apavora muito a idéia dele ter mesmo parado pra pensar no que eu lhe disse e eu não ter feito o mesmo com o que ele falou. Por conta disso vira e mexe eu penso nessa questão, especialmente quando assisto a qualquer seriado na TV e sempre me faço essa mesma pergunta: nos seriados os personagens mudam a cada episódio (ou seja, a cada história contada)?
Ainda não consegui ter uma resposta definitiva pra isso, esse artigo não pretende resolver a questão, ao contrário pretende suscitá-la.
Vale lembrar que essa idéia de que o herói tem que mudar vem desde Aristóteles, que já prenunciava que o herói volta pra sua aldeia trazendo o Santo Graal, volta modificado. Temos que perceber que aquela trajetória que assistimos foi transformadora na sua vida. Penso eu: caso contrário, por que cargas d’água nos interessaríamos pela história, se ela não tivesse causado nada na vida do personagem? Ou usando o simbolismo de Aristóteles, vale a pergunta: que herói é esse que não traz nada na volta da sua jornada?
Tudo bem, não precisa mesmo todo personagem trazer o Santo Graal, mas um personagem deve mesmo acabar transformado graças à trajetória que assistimos, ele deve ter amadurecido, deve ter compreendido alguma coisa que se recusava a entender, deve ter respondido a uma questão que lhe afligia, deve ter conseguido resolver alguma relação engasgada, enfim, algum degrau ele deve ter subido, pra trajetória ter sido valiosa. Valiosa a ponto de contar pros outros. Mais valiosa ainda a ponto dos outros pagarem ingresso pra ouvirem a história.
Quando se fala de uma obra completa em si, como um filme ou um livro, eu não tenho dúvidas de que isso é verdade. Pra cada exemplo que alguém ache onde no filme o herói não muda, tenho certeza que terei alguns outros milhões de exemplos na manga, provando que sim, que o herói muda. Mas e em obra seriada, como é que isso se aplica? Aliás, a pergunta certa é: isso se aplica?
Vou pegar como exemplo 4 séries de TV, 4 que julgo muito importantes na história da televisão mundial e que a meu ver lidam com essa questão de maneira distinta. NOTA: claro que eu não revi na integra essas quatro séries antes de escrever esse artigo, estou falando movido por sensação. Mas tenho a sensação de que minhas sensações nesses exemplos estão certas.
Anos Incríveis.
Certamente Kevin Arnold muda sim a cada episódio. Afinal isso é a essência da série, que fala da trajetória inteira desde a pré-adolescência até os 18 anos do herói. Pra série poder ir pra frente, cada episódio que assistimos deve sempre simbolizar mais um passo no crescimento deste personagem. Num ele muda sua forma de enxergar as mulheres, noutro ele desmistifica seu pai, noutro ele passa a entender melhor a mãe, noutro ele perde a ingenuidade em relação à política, noutro ele passa a reconhecer os valores do professor de matemática e assim por diante. Então ótimo, temos aqui um bom exemplo de personagem de seriado que muda a cada história contada.
Sex and the City
. Carrie às vezes muda, às vezes não. Ou às vezes muda pra dali a 10 episódios “desmudar” pra como estava antes (o que não deixa de ser uma mudança, pelo menos na trama daquele episódio.) Exemplo típico disso é seu estica-encolhe com Big e a expectativa dela por ele que flipa de um lado pro outro o tempo todo. Em alguns casos Carry muda ao longo de alguns episódios. Como por exemplo quando ela se relaciona com o político que ao fim pede pra ela dar uma mijada nele. Num episódio ela começa com o embascamento pelo glamour da vida política, 4 ou 5 episódios adiante ela amadurece, entende o que está por trás daquilo, muda sua visão da coisa e isso a transforma.
Essa situação já me deu uma dica de como o Santo Graal entra em cena em projetos seriados: temos que entender aqueles episódios como frações de uma trama inteira, vista capítulo a capítulo. Não obrigatoriamente precisamos ver essa mudança só no final da série (até porque quem escreve uma série normalmente não sabe ao certo quando ela vai acabar). Mas podemos entender que as tramas onde aquele personagem vai entrar podem se esparramar por diversos episódios. Assim, cada um dos elementos-pilares do drama acontecem à prestação, o que também é válido.
Isso me daria um certo alento, não fossem os outros dois exemplos:
A Feiticeira
A Feiticeira nunca muda. Ela é no começo e no fim de cada episódio, no começo o no fim da própria série a mesma mulher, com as mesmas carências, as mesmas habilidades e principalmente os mesmos valores. Nada muda nela. Ok, como eu mesmo disse, a mudança do personagem não precisa ser nada grandioso, pode ser só por exemplo uma dúvida íntima que se dirime.
Mas nem isso acontece com Samanta. E ok, pode ter ali um episódio ou outro onde ela aprendeu que quando o Tio Arthur está de visita, é melhor deixar a cortina fechada, pra Senhora Kravitz não ver as peripécias do tio. Mas isso nem de longe se parece com um Cálice Sagrado, não é nada que tenha de fato transformado o personagem. E aí já começa a me dar uma certa angústia, porque estaria aqui um exemplo concreto dessa negações de Phil Parker . E a Feiticeira nem ao menos é o pior exemplo. O pior é House.
House não muda de propósito. Em diametral oposição a Anos Incríveis, a essência dessa série está intimamente ligada a “imutabilidade” do herói, ou talvez até na sua total incapacidade de mudar, de deixar de ser daquele jeito amargo e escroto que ele é. Dessa solidez estanque é feito House. E fazê-lo mudar seria como fazer Doutor Spock começar a rir ou ter emoções.
Ele nem ao menos aprende, porque aprender seria de alguma forma negar seu “super-poder”, que é saber tudo. Ainda que chegue nas soluções pelos métodos mais heterodoxos, ele sempre sabe muito bem do que está falando, ninguém o ensina, ele é que faz os outros aprenderem.
Sinuca de bico.
Claro que sabemos faz tempo que os deuses que regem o cinema não são os mesmos que regem por exemplo a televisão ou o teatro. Mas num ponto tão crucial como esse, pareceria que esses deuses todos em alguma convenção anual tivessem chegado num acordo e teriam acertado que, independente da mídia, todo herói muda. Mas pelo jeito não foi isso o que aconteceu.
O quê então define isso? Eu tenho certeza que as pessoas sairiam frustradas do cinema se assistissem a uma história que não transformou o personagem central. Mas tenho o mesmo volume de certeza que as pessoas parariam de assistir House ou a Feiticeira (e tantos outros seriados) se os valores desses personagens mudassem, ainda que mudassem “pra melhor”.
O que nos faz ver essas séries é a certeza da continuidade, a certeza de que não tomaremos esse susto de ver que House aprendeu a tratar com respeito seus auxiliares, ou que James Bond realizou que não é correto se relacionar sexualmente com uma espiã estrangeira pra conseguir informações importantes.
Como disse, não tenho a resposta pra isso. Tenho por enquanto só a dúvida abraçada a angústia de ver um dos pilares clássicos do drama ficar tão frouxo assim diante dos meus olhos, sem no entanto fazer com que a casa caia. A primeira solução que me ocorre é propor pra nunca mais ninguém assistir televisão. Mas mesmo se eu conseguisse convencer o mundo inteiro disso, aqui no meu íntimo sempre restaria essa dúvida: por que o maldito Phil Parker estava certo nisso e em obra seriada o herói não precisa mudar?
Comments