Como moderador de um grupo de discussão de roteiros na Internet, nas semanas que se passaram me deparei com inúmeros e-mails discutindo a questão da presença ou não de censura nas regras do novo “Manual de Classificação Indicativa” elaborado pelo Ministério da Justiça.
Em princípio me calei, escutando a velha sabedoria popular que nos diz para “não mexer em vespeiro”, sobretudo quanto se busca desenvolver uma postura imparcial na condução séria de um fórum coletivo. Porém, ao observar a evolução e o esquentar de argumentos, comecei a perceber que minha omissão, não apenas como moderador, mas como escritor, roteirista, advogado e professor de Direito Público, se mostraria, afinal, o meu maior erro.
Assim, imprimi e li todos os artigos relacionados ao tema. Analisei atentamente o conteúdo do “Manual” e, por fim, acabei chegando a algumas conclusões, mesmo tentando não deixar nem um nem outro lado (autoral versus jurídico) se apropriar de meu bom-senso.
Acabei por listar meus principais contra-argumentos ao “Manual” em um e-mail que, repercutindo, acabou por se tornar este artigo. Espero estar, desta forma, contribuindo para que esse debate seja levado adiante perante toda a sociedade brasileira.
Analisando o Manual
Minhas principais observações com relação ao “Manual da Nova Classificação Indicativa”:
Televisão não é sucedânea da educação formal, que deve ser conferida pelo Estado. Partir desse pressuposto, tornando-o inevitavelmente obrigatório, é viciar total e completamente a cultura brasileira. Vejamos certo trecho do Manual:
“A Classificação Indicativa, se inserida de forma eficiente nos espaços educativos, pode contribuir para melhorar e intensificar uma aproximação mais consistente e perene entre educadores e educandos com os temas da comunicação”. (Trecho “Parceria com a Educação”, página 12 do Manual).
Minha opinião: É inegável a importância da televisão na divulgação de bons princípios, boas condutas e formação de uma consciência coletiva de fraternidade. Porém, a televisão – em especial a ficção televisiva – tem por origens primordiais a dramaturgia, evoluída em tele-teatro que posteriormente deu origem aos produtos tipicamente brasileiros: telenovela e minisséries. A função da ficção televisiva é ESSENCIALMENTE cultural, devendo espelhar a realidade e ironiza-la, criticá-la, e assim o fazendo, estará cumprindo sua função social, que é a de EXPRESSÃO ARTÍSTICA. Tolher conteúdos ou conduzir narrativas é cercear o desenvolvimento cultural brasileiro. Não é com um pseudo-didatismo forçado que a televisão conseguirá compensar as falhas estruturais da educação brasileira.
A afirmação feita pelo “Manual” de que estaria criando parâmetros “objetivos” é verdadeiro contra-senso lógico. Vejamos o seguinte trecho:
“A construção de um novo modelo de classificação pautou-se ainda nos seguintes pontos: (…) objetivar o processo por meio do estabelecimento de parâmetros concretos e constantes de análise, muito à semelhança da metodologia de análise de conteúdo das ciências sociais.” (pág. 13 do Manual)
Vejamos outro trecho onde o Manual reconhece a própria contradição, dizendo da impossibilidade de se “objetivar” o “subjetivo”:
“Com isto, reduz-se significativamente o grau de subjetividade, sem, contudo, elimina-lo. Isso por que sistemas complexos, como a sociedade e a mídia, não podem ser regulados a partir de uma quantificação objetiva da realidade. A objetividade nesses casos é fundamental, mas não abrange todo o processo”. (págs. 14 e 15 do Manual).
Minha opinião: A apreciação da capacidade destrutiva/construtiva da arte JAMAIS será objetiva, vez que nasce de um processo cognitivo que é absolutamente peculiar, individual e intransferível. Ainda que tenhamos um “senso comum” sobre a arte, este “senso” jamais será objetivo, e jamais poderá ser tomado como tal. Consenso (senso comum) não é dado objetivo, é fruto da somatória das subjetividades. Ainda que toda a sociedade entenda de tal ou qual forma sobre uma obra, a liberdade de expressão de seu autor deve ser defendida, como forma de oxigenação da mentalidade social. A História está repleta de exemplos de obras repudiadas pela moral e mentalidade da época, afinal absolvidas pela evolução dos tempos. Esse papel de “chancela” estatal não pode, desta forma, ficar ao encargo de vias burocráticas.
O Manual fala em “contagem numérica” para a classificação indicativa. Pergunto: números valoram criação abstrata? Numerar, contar cenas equivale a mensurar seu impacto emocional? Outro grande equívoco do Manual. Vejamos o trecho, que inclusive lança seus tentáculos à publicidade:
“PUBLICIDADE. Com a implementação deste sistema objetivo – cuja metodologia permite a contagem numérica de características dos conteúdos audioviduais analisados – serpa possível mensurar elementos que não são, atualmente, passíveis de classificação. Essa possibilidade é especialmente relevante para o caso da publicidade: disponibilizar à sociedade a proporção e o tipo dos conteúdos publicitários presentes da programação será uma contribuição importante para a discussão do tema” (pág. 17 do Manual.)
Para COROAR o desfile de argumentações do Manual, trago o trecho que fala de “ironia”, “subliminares” e todos os outros tipos de alquimia criativa que, ao invés de serem desestimuladas pelo Estado, deveriam ser fomentados para enriquecer a criação ficcional do Brasil. Vejamos:
“Assim, nesse instrumento não devem ser consideradas – a fim de evitar o excesso de subjetividade – o não dito, o não visto, o simbólico e implícito, o subliminar. O silêncio, olhares, ironias são formas tão ou mais ratificadoras de comportamentos indesejáveis do que cenas de clara e inequívoca violência, por exemplo, contra as mulheres. Contudo, deixar aberta à subjetividade a análise de aspectos como esses pode vulnerabilizar, em muito, um sistema de classificação de obras audiovisuais”.
Minha opinião: acho que nesse ponto, o Manual deve estar pedindo que a classe artística lhe dê um “muito obrigado”… (fui irônico). Impressionamente como alguns trechos desse Manual conseguiram ser infelizes. Mas este, especialmente, me deixou indignado pela postura dos elaboradores do Manual em dizer que “estão fazendo um sistema à prova de equívocos” e para tanto, até mesmo farão “vista grossa” para as nuanças de um filme, novela, seriado. Este trecho, soou para mim como um “daremos esta canja criativa” para que possamos “aplicar nosso sistema matemático de classificação objetiva de subjetividades”.
Assumindo uma postura
Sinceramente, analisei todos os pontos do Manual. Apesar de respeitar o trabalho e a dedicação de seus elaboradores, que realmente acreditam estar defendendo a Democracia, afirmarei e repetirei tantas vezes quanto necessária que o “policiamento” de textos, a “restrição” de sua divulgação, a “rotulação” de seu conteúdo, não pode e nem deve ficar ao encargo de fórmulas pretensamente matemáticas, presunçosamente justas, que no frigir dos ovos, serão aplicadas por funcionários públicos.
Obs.: Apenas para dar um exemplo de filme extremamente violento, extremamente sexual, extremamente forte, mas que desempenhou um papel didático relevantíssimo: “KIDS” (1995). Alguns colégios em São Paulo montaram exibições deste filme para seus alunos no ensino médio, para que através do anti-exemplo, surgisse a valorização à saúde, à vida e à amizade. Como ficaria a situação deste filme, diante deste Manual de Classificação Indicativa? Cultura mensurada matematicamente pelo Estado é um completo e absoluto desserviço à evolução social.
Leonardo de Moraes é escritor, roteirista, advogado e professor de Direito Público nas Universidades Presbiteriana Mackenzie e Paulista, nas matérias de Direitos Humanos, Direito Administrativo e Direito Constitucional. Formou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), pela qual conclui seu mestrado em Direito do Estado. Foi assessor do Governador do Estado de São Paulo, nos anos de 2004 a 2006.
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