As profundas transformações provocadas pelo advento das novas tecnologias digitais nos meios de comunicação, na criação artística e no mercado de entretenimento são uma realidade já bastante debatida no meio acadêmico. Porém a criação de produtos culturais voltados para a sociedade globalizada ainda é um campo bastante fértil para experimentações e suposições, constituindo um desafio tanto para o pensamento dos teóricos de estudos culturais quanto para a criatividade de artistas e produtores.
Profissionais do mercado de entretenimento e cultura de massa preocupam-se hoje com a solução de questões como o complexo relacionamento entre culturas locais e culturas transnacionais; as novas e infinitas possibilidades criativas que se constituem através da velocidade do deslocamento de informação nas mídias digitais; as dificuldades enfrentadas em relação à tradutibilidade cultural de obras voltadas para um público marcadamente transnacional; e as novas formas que podem assumir esses produtos culturais criados em pleno mundo globalizado.
Trabalhando na área de produção cultural há vários anos, como jornalista e roteirista de televisão e cinema, fui obrigada a refletir profundamente sobre a formatação de produtos culturais para a sociedade informatizada e globalizada ao ser convidada, em 2000, para criar roteiros de dramaturgia audiovisual num portal infanto-juvenil da Internet.
A questão que imediatamente me ocorreu foi a fabulosa quantidade de novos recursos disponíveis, naquela mídia, para se contarem histórias em formato audiovisual.
Entre esses, os que me chamaram mais a atenção foram a possibilidade de simultaneidade de ações dramáticas, ou seja, de se construírem tempos paralelos numa mesma narrativa, proporcionando uma desconstrução da relação entre o tempo e o espaço dramático; e a possibilidade de interatividade entre o antigo autor da obra, que chamo neste trabalho de primeiro autor, e seu público – que pode se transformar em co-autor, interferindo na construção da narrativa, escolhendo destinos e mudando os rumos dos acontecimentos com um simples clicar do mouse, revolucionando a posição até então passiva do receptor em relação a obras dramáticas audiovisuais convencionais.
O advento da tecnologia de televisão digital, que deve ser implantada no Brasil até 2010, reforçou a idéia de que era necessário pensar em novos formatos de entretenimento audiovisual para estas novas mídias.
A proposta deste trabalho é, portanto, sugerir o desenvolvimento de um novo formato de narrativa dramática audiovisual que utilize as tecnologias de comunicação digital e todas as suas possibilidades, incluindo interatividade, fragmentação da narrativa, simultaneidade de ações e descentralização da figura do autor, elementos que ampliam os limites da representação dramática tradicional e descortinam um ambiente de comunicação ainda desconhecido, pleno de possibilidades de interação entre autores e receptores.
Essa nova narrativa dramática é chamada aqui de hiperdrama, a partir do estudo dos conceitos de hipertexto e hipermídia. Por possuir características que o relacionam diretamente com as questões da pós-modernidade e da globalização, a hipótese que pretendo defender é que o hiperdrama seria a representação pós-moderna da dramaturgia audiovisual.
Este trabalho tenta lançar um olhar mais acurado sobre uma questão que fatalmente irá emergir nos próximos anos, com a solidificação das novas tecnologias digitais nos meios de comunicação: a necessidade de reestruturação conceitual do mercado de entretenimento de massas para a sociedade globalizada.
Hipertexto e hipermídia
A utilização do conceito hiperdrama neste trabalho tem o objetivo de definir um novo formato de narrativa dramática audiovisual, passível de ser executada apenas em mídias digitais, e cuja estrutura se baseia principalmente nos conceitos hipertexto e hipermídia, ambos largamente utilizados, definidos e estudados principalmente quando se pensa em Internet e com a qual estão profundamente ligados desde a sua criação.
A origem do conceito hipertexto é atribuída a um artigo do cientista e acadêmico americano Vannevar Bush (1890-1974), que dirigiu, durante a Segunda Guerra Mundial, o Office of Scientific Research and Development dos Estados Unidos, órgão responsável pelas pesquisas efetuadas para a guerra.
O artigo As we may think, escrito após o fim da guerra, em 1945, foi publicado originalmente na revista Atlantic Monthly e atualmente é referência mundial nos estudos sobre a Internet.
Preocupado com a melhor forma de organizar o saber científico da época, espalhado por laboratórios do mundo inteiro sem nenhum tipo de catalogação, Bush descreveu ali um mecanismo que chamou de Memex (abreviação de Memory Extender), cuja proposta era complementar a memória humana criando um meio de organizar informações através do processo da associação.
Seu projeto previa que o usuário juntasse pedaços de informação criando links, que ele chamava de trails, ou trilhas, através das quais qualquer item catalogado poderia ser ligado a outro.
O Memex também permitiria aos usuários copiar e inserir informações, bem como conectá-las àquelas já existentes. O projeto jamais saiu do papel mas, caso fosse construído, o Memex teria sido a primeira biblioteca interativa da História. Visionário, Vannevar Bush já previa a forma de armazenamento de dados que atualmente é utilizada em larga escala no mundo digital. (BUSH, 1945)
Mas o termo hipertexto só foi cunhado anos depois, por Theodore Nelson, em 1965, para descrever a idéia de textos não lineares ligados por meio eletrônico, que permitiria aos leitores fazerem buscas por associação.
Nelson desenvolveu um sistema chamado por ele de Xanadu, em homenagem ao poema de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). Nelson visualizou um sistema de documentos “impossível de ser medido pelo homem” – exatamente como as cavernas do poema – onde um leitor poderia seguir seu próprio caminho através de uma rede, e ainda acrescentar um documento a ela, se quisesse. (NELSON, 1965)
Novas definições seguiram-se à de Nelson ao longo dos anos, mas a dele ainda pode ser considerada a mais “pura”, pois apresenta apenas os elementos essenciais de ligação entre os arquivos e o controle do leitor.
Outra definição de hipertexto que também nos serve para pensar o hiperdrama é dada por Pierre Lévy, que o descreve como um conjunto de nós ligados por conexões:
“Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos (…), seqüências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. (LÉVY, 1993, p.33)
Segundo Lévy, o hipertexto tem seis características principais:
metamorfose, já que a rede hipertextual está em constante construção e renegociação;
heterogeneidade, pois nele encontram-se imagens, sons, palavras, sensações etc.;
multiplicidade, já que o hipertexto se organiza em um modo ‘fractal’, ou seja, qualquer nó ou conexão pode revelar-se como sendo composto por toda uma rede;
exterioridade, pois a rede não possui unidade orgânica, nem motor interno, dependendo de um exterior indeterminado;
topologia, em que tudo funciona por proximidade, por vizinhança;
e finalmente a mobilidade dos centros.
Nancy G. Patterson lembra que, embora alguns teóricos discorram sobre pensamento hipertextual, o tipo de pensamento que ocorre durante os processos de leitura e escritura do hipertexto é muito próximo da própria cognição humana. (PATTERSON).
Este é um dos pontos mais curiosos e interessantes da cultura cibernética, dos processos na Internet, do hipertexto e, por que não dizer, do hiperdrama: seu funcionamento é muito semelhante ao da mente humana, indo e vindo em direções aleatórias, misturando passado, presente e futuro, fazendo ligações entre idéias e pensamentos que aparentemente não possuem qualquer conexão entre si.
Também o conceito de hipermídia, bastante próximo ao de hipertexto, tem características muito próprias para o hiperdrama. Segundo Arlindo Machado, a hipermídia aproveita a arquitetura não linear das memórias de computador para viabilizar obras “tridimensionais”, dotadas de uma estrutura dinâmica que as torne manipuláveis interativamente. (MACHADO, Arlindo, 1997, p.146)
Hiperdrama e pós-modernidade
Estas características de fragmentação e descentralização presentes nos conceitos hipertexto e hipermídia remetem aos estudos sobre a pós-modernidade, que é definida por Jean-François Lyotard como
“o estado da cultura após as transformações que afectaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do fim do século XIX.” (LYOTARD, 1989, p.11).
Transformações estas bastante aceleradas a partir dos anos 1960, quando o advento de novas tecnologias de informação e o processo de globalização do capitalismo deram início a uma revolução nos meios de comunicação de massa, que romperam e ultrapassaram fronteiras culturais e socioeconômicas. David Harvey coloca que o pós-moderno privilegia a heterogeneidade e a diferença como “forças libertadoras” na redefinição do discurso cultural. Segundo ele, a fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais são o marco do pensamento pós-moderno. (HARVEY, 1992, p.19).
Na mesma obra, Harvey cita Lyotard, lembrando como o filósofo francês emprega uma metáfora de Wittgenstein para “iluminar a condição do conhecimento pós-moderno”:
“A nossa linguagem pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de ruelas e pracinhas, de velhas e novas casas, e de casas com acréscimos de diferentes períodos; e tudo isso cercado por uma multiplicidade de novos burgos com ruas regulares retas e casas uniformes”. (HARVEY, 1992, p.51).
A representação da antiga cidade européia, utilizada como metáfora da pós-modernidade, poderia ser comparada à arquitetura das favelas brasileiras, retratos nacionais do caráter excludente da globalização e do capitalismo tardio no qual estamos inseridos atualmente, e que são profundamente relacionados com o que se convencionou chamar de pós-modernidade. Harvey reforça esta idéia quando coloca, invocando Fredric Jameson, que o pós-modernismo não é senão a lógica cultural do capitalismo avançado. (HARVEY, 1992, p. 65).
Metáfora semelhante é utilizada por Machado, ao afirmar que a hipermídia reproduz perfeitamente a estrutura descentrada de um labirinto:
“Ao contrário do que imaginavam os gregos, o labirinto cretense não era uma prisão ou uma máquina de guerra, mas exatamente uma arquitetura representativa da complexidade máxima que a imaginação do homem da Antigüidade podia conceber (…). A saída não era propriamente um problema para o visitante (…). O problema, na verdade, era como avançar sem perder-se (…) Nesse sentido, o labirinto existia para ser percorrido (…) de modo a explorar ao máximo suas possibilidades.” (MACHADO, Arlindo, 1997, p.149).
Essa idéia se encaixa como uma luva no conceito de hiperdrama, que seria um labirinto de dramas, um emaranhado de histórias, uma teia de ações construída em rede de mídia digital, na qual o navegador poderia entrar e sair, interagindo com as ações propostas por aquele que passo a chamar de primeiro autor.
Isto porque, sendo obra interativa que permite intervenções de outrem, o hiperdrama não comporta apenas um autor, mas vários – na verdade, quantos desejarem entrar na história e modificá-la de acordo com suas próprias preferências.
Característica que também se relaciona com um dos aspectos da cultura pós-moderna: a desconstrução do poder do autor. Este deixa de impor significados ou narrativas, necessitando, para a conclusão de seu trabalho, da participação ativa dos receptores, que passam a ser co-autores da narrativa dramática.
Machado afirma ainda que todo texto é sempre a atualização de uma infinidade de escolhas, num repertório de alternativas que acabam eliminadas na versão final da obra. Ao longo do processo de escritura, o texto “sofre o fogo cerrado dos críticos imaginários que atormentam o autor, multiplica-se numa profusão de possibilidades (que depois se rasuram ou se apagam), bifurca-se diante das soluções diferenciadas.” (MACHADO, Arlindo, 1997, p.148).
Já o texto hiperdramático passa a permitir que o receptor, ao navegar pela história, tenha a oportunidade de conhecer todas as outras possibilidades do desenrolar imaginadas pelo primeiro autor e que, numa narrativa tradicional, são deixadas de lado conforme a narrativa vai se desenvolvendo. Ou, indo mais além, de criar novas possibilidades de acordo com sua própria subjetividade, transformando aquela história numa nova narrativa, em que estarão presentes elementos de sua própria cultura, que por sua vez passarão a circular pelas máquinas da rede num sistema de troca cultural jamais realizado antes.
Guattari afirma que não se pode falar de produção de subjetividade sem reconhecer que seus conteúdos dependem, cada vez mais, de uma infinidade de “sistemas maquínicos”. (GUATTARI, 1993, p.177).
Seguindo esta linha de pensamento, a união de homem e máquina na construção de subjetividades leva a uma nova forma de produção de cultura que está em andamento na sociedade.
Edmond Couchot coloca que a relação entre artista e público através da máquina permite uma interação instantânea, tornando possível ao público associar-se diretamente à produção da obra e acelerando a produção de significados: “Uma obra interativa não saberia esperar indefinidamente como Cinderela adormecida para ser acordada para significar.” (COUCHOT, 1997, p.135).
Ainda segundo Couchot, o desenvolvimento das tecnologias numéricas proporciona agora formas de participação mais elaboradas e ampliadas. O computador permite efetivamente ao público interagir com imagens, textos e sons que lhe são propostos. É permitido a cada um associar-se diretamente não somente à produção da obra, mas também a sua difusão. (COUCHOT, 1997, p.137).
O que pode provocar, agora de acordo com Manovich, a suspensão de um dos fatores mais sedutores da narrativa dramática audiovisual, a ilusão – suspensão esta causada pela interação do usuário com a obra através da máquina. Neste caso, sem máquina não há obra e portanto não há artista, autor ou receptor. O processo não se inicia e nem se completa a não ser através dela. (MANOVICH, 2000, p.206)
O hiperdrama pode ser comparado também a uma representação arquitetônica definida por Fredric Jameson como “hiperespaço pós-moderno” – o Hotel Bonaventure, construído no novo centro de Los Angeles pelo arquiteto John Portman:
“Há três entradas no Bonaventure, uma na rua Figueroa e as outras duas através de jardins suspensos do outro lado do hotel, que se encaixa na encosta restante da antiga Beacon Hill. Nenhuma delas tem qualquer semelhança com as antigas marquises das entradas de hotéis (…). As entradas do Bonaventure são, por assim dizer, pela porta dos fundos, bem ao estilo das entradas de serviço; os jardins do fundo dão acesso ao sexto andar das torres e, mesmo ali, tem-se que descer um lance de escadas para descobrir o elevador pelo qual se tem acesso ao saguão. Entrementes, aquilo em que ainda ficamos tentados a pensar como sendo a entrada principal, na rua Figueroa, admite-nos, com bagagem e tudo, à sacada do segundo andar, de onde temos que descer uma escada rolante para chegar ao balcão da recepção.” (JAMESON, 1993, p.35)
Como no labiríntico Bonaventure de Portman, o navegador do hiperdrama pode entrar na narrativa não necessariamente pelo início, ou sair necessariamente pelo final. O hiperdrama comporta várias ações simultâneas distintas, que por sua vez levam a outras ações, e outras, e outras, bifurcando-se sucessivamente.
Bifurcação no tempo e justaposição de espaços
Assim, as narrativas do hiperdrama formam uma teia intrincada, um labirinto de narrativas, “uma bifurcação no tempo, e não no espaço”, como propõe Borges:
“Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam.” (BORGES, 1975, p.100)
Novamente aqui encontramos outra característica da modernidade tardia: o rompimento da relação tempo-espaço, como coloca Anthony Giddens, afirmando que “o dinamismo da modernidade deriva da separação do tempo e do espaço e de sua recombinação em formas que permitem o ‘zoneamento’ tempo-espacial preciso da vida social.” (GIDDENS, 1991, p.28)
Um conceito lembrado por Harvey que também pode ajudar a compreender o hiperdrama é o de heterotopia, de Foucault, que “designa a existência, num ‘espaço impossível’, de um ‘grande número de mundos possíveis fragmentários’, ou, mais simplesmente, espaços incomensuráveis que são justapostos ou superpostos uns aos outros.
As personagens já não contemplam como desvelar ou desmascarar um mistério central, sendo em vez disso forçadas a perguntar “Que mundo é este? Que se deve fazer nele? Qual dos meus eus deve fazê-lo?” (HARVEY, 1992, p.52)
Narrativas hiperdramáticas e videogames
Um dos produtos culturais da era digital que mais se aproxima da estrutura do hiperdrama são os videogames, que possuem recursos interativos semelhantes ao que se está propondo nesta dissertação.
Gonzalo Frasca, num trabalho sobre narrativas dramáticas em videogames, faz uma análise sobre as teorias narrativas de Claude Bremond em sua obra Logique du recit (1973). Bremond basicamente trabalha com a seguinte questão: “É possível descrever a completa rede de opções que a lógica oferece ao narrador em qualquer ponto da história para continuar com seu desenvolvimento?” (FRASCA, 1999)
Esta rede de opções, que não formam a narrativa em si, mas as “possíveis narrativas” (possibles narratifs), já pode ser encontrada em alguns videogames do tipo adventure, que começam a utilizar narrativas dramáticas e oferecem ao jogador algumas opções de interatividade.
Um exemplo da hiperdramatização do videogame é o jogo japonês Shenmue, desenvolvido por um dos maiores criadores de games do mundo, Ryo Suzuki, para a plataforma Dreamcast, da Sega – uma superprodução em 3-D, com toques e custos hollywoodianos, que levou cinco anos para ser finalizada e foi lançada em 2000 nos Estados Unidos.
O fio condutor é a história do filho de um samurai que assiste ao assassinato de seu pai e sai em busca dos criminosos para fazer justiça. A narrativa dramática se desenrola dentro do próprio videogame, e o jogador precisa executar certas tarefas para conseguir que a história siga em frente.
As tarefas vão desde acender e apagar a luz de um aposento até lutar contra vários inimigos, passando por viagens de ônibus e trabalho duro no cais do porto – tudo isso para fazer com que a narrativa se desenvolva. Se o jogador seguir outro caminho que não o correto, precisará encontrá-lo para prosseguir, mas enquanto isso poderá visitar lojas, fazer compras, conhecer pessoas e até namorar, numa representação muito realista da vida que sobrepõe diversas narrativas e acontecimentos.
Cabe voltar a ressaltar que no hiperdrama, definitivamente, o espectador não é mais um receptor passivo, como quando lê um livro, assiste a um filme, vê televisão ou mesmo joga um videogame comum. Ele não é mais um observador externo, mas sim o próprio condutor da narrativa. Como coloca Couchot, o autor e seu destinatário encontram-se necessariamente associados à produção e à circulação dos textos, imagens e sons, estando atrelados ao mesmo projeto. (COUCHOT, 1997, p. 139-140)
Questões sobre a autoria da obra
Couchot levanta um questionamento bastante provocador: o autor, enfim, continua sendo o autor a partir do momento em que delega uma parte maior ou menor de sua responsabilidade na criação da obra? Ou seria preciso repensar estas relações?
Segundo ele, a partir do momento em que se admite que uma certa fração da subjetividade do observador se projeta no sistema através das interfaces e se hibridiza com a do autor, é preciso se interrogar sobre o que resta de próprio e de inalterável ao autor originário. (COUCHOT, 1997, p. 141-142)
Até que ponto será possível construir uma obra de arte realmente coletiva? Para Couchot, a obra interativa só tem existência e sentido na medida em que o espectador interage com ela. (COUCHOT, 1997, p.140)
Mas essa co-autoria do receptor com o primeiro autor é mesmo real? Será que o usuário de um objeto de nova mídia realmente faz escolhas? Ou estas escolhas são direcionadas pelo primeiro autor, de uma maneira disfarçada em “interatividade”? Manovich tenta responder a esta questão:
“Antes, deveríamos ler uma frase de uma história ou uma linha de um poema e pensar em outras linhas, imagens, memórias. Agora a mídia interativa nos pede para clicar numa frase em destaque para ir para outra frase. Em resumo, somos requisitados a seguir associações existentes objetivamente pré-programadas.
Em outras palavras, no que pode ser lido como uma versão atualizada do conceito de “interpelação”, do filósofo francês Louis Althusser, somos requisitados a tomar por engano a estrutura da mente de outra pessoa como a nossa própria. (…) Este é um novo tipo de identificação do trabalho cognitivo apropriada para a era da informação.
As tecnologias culturais da sociedade industrial – cinema e moda – nos pediam para nos identificarmos com a imagem corporal de outra pessoa. A mídia interativa nos pede para nos identificarmos com a estrutura mental de outra pessoa.” (MANOVICH, 2000, p.61)
É possível que esta imposição de subjetividades deixe de existir? Manovich coloca que sempre se diz que o usuário de um programa interativo se torna seu co-autor. Que, escolhendo um caminho, ele supostamente cria um novo trabalho. Mas, segundo ele, este processo pode ser visto de uma maneira diferente.
Se um trabalho completo é a soma de todos os possíveis caminhos nele contidos, então o fato de o usuário seguir um caminho particular faz com que ele acesse apenas parte deste todo pré-existente, ativando parte do trabalho total que já existe e foi criado, não por ele, mas pelo primeiro autor do trabalho.
Então esta co-autoria continua sendo duvidosa. Paradoxalmente, ao seguir um caminho “interativo”, o usuário não constrói uma identidade única, mas, ao contrário, adota identidades já preestabelecidas pelo primeiro autor da obra.
Para Couchot, por conta da particularidade da interconexão em rede, um número considerável de pessoas podem entrar juntas no jogo da interatividade e uma outra dimensão coletiva se acrescenta então à relação dual da obra e do espectador.
A interação não se produz mais somente em relação à obra e o espectador, mas, também, entre a coletividade dos espectadores, através da obra. Nas situações mais representativas, a participação do espectador, que se faz sob forma de gestos, textos, imagens e sons se inscreve na memória da obra cuja identidade muda e evolui constantemente, em torno de um núcleo preconcebido pelo primeiro autor que lhe assegura uma coerência e uma continuidade.
Para ele, estas experimentações têm uma forte vocação transcultural (COUCHOT, 1997, p.138-139). E a vocação transcultural é uma das mais fortes características do hiperdrama, narrativa sem fronteiras que atravessa o mundo e volta a sua origem transformada por meio dos cliques dos mouses de seus inumeráveis autores.
Finalmente, segundo Manovich, a tecnologia da nova mídia atua como a mais perfeita realização da utopia de uma sociedade ideal composta de indivíduos únicos.
Isto porque os objetos da nova mídia asseguram a seus usuários que suas escolhas, e portanto seus pensamentos e desejos, são únicos. “Como se tentando compensar por seu papel anterior de tornar-nos todos iguais (…) estão agora trabalhando para convencer-nos de que todos somos únicos.” (MANOVICH, 2000, p.42)
Bibliografia
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BORGES, Jorge Luis. O jardim dos caminhos que se bifurcam, in Ficções. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
COUCHOT, Edmond. A arte pode ainda ser um relógio que adianta? O autor, a obra e o espectador na hora do tempo real, in DOMINGUES, Diana (org.), A arte no século XXI – a humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp, 1997
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
GUATTARI, Felix. Da produção de subjetividade. In Imagem Máquina – A era das tecnologias do virtual. André Parente (org.) Editora 34. Rio de Janeiro, 1993.
HARVEY, David. A condição pós-moderna – uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
JAMESON, Fredric. O pós-modernismo e a sociedade de consumo, in KAPLAN, E. Ann (org.), O mal-estar no pós-modernismo, teorias e práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
MACHADO, Arlindo. Hipermídia: o labirinto como metáfora, in DOMINGUES, Diana (org.), A arte no século XXI – a humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp, 1997.
MANOVICH, Lev. The language of new media. The MIT Press, Cambridge Massachusetts; London, England: 2000
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