Em comemoração aos seus 40 anos de carreira como roteirista, Doc Comparato compartilha com o site da ABRA as suas anotações pessoais sobre a oficina de roteiro que ele ministrou no final dos anos 1980 ao lado do prêmio Nobel de literatura, Gabriel Garcia Márquez.
Doc também é autor de um dos primeiros guias de roteiro lançados. ‘Da criação ao roteiro’ já foi traduzido para diversas línguas e serviu de base para muitos roteiristas desenvolverem suas habilidades e técnicas de escrita. Confira abaixo os dois primeiros trechos do diário. No final da página, é possível fazer o download do diário completo.
Por Doc Comparato
O que segue é um conjunto de observações, notas e apontamentos que escrevi sobre a Oficina de Roteiros com Gabriel Garcia Márquez, aliás, Gabo, que aconteceu em Cuba em 1987.
Este material escrito é pessoal e não reproduz nenhum momento de meu trabalho na Oficina de Roteiro, já que existe um livro que transcreve os diálogos e o método de trabalho desenvolvido por mim e Gabo para criar uma minissérie internacional ao lado de dez jovens roteiristas latino-americanos.
A minissérie se chamou Me alugo para sonhar, foi estrelada por Hanna Schygulla e teve produção espanhola. Ela foi exibida com sucesso em vários países europeus e sul-americanos. Sua distribuição foi internacional.
Daí se conclui que a oficina foi produtiva, o objetivo foi cumprido integralmente e, mais importante, todos saímos enriquecidos criativamente do encontro e com uma minissérie de verdade no currículo. E aqui se faz necessário perguntar: por que revelo os pequenos textos só agora, quase duas décadas depois? A quem interessaria? Para quê?
Antes de tudo é bom avisar que não existe cronologia formal nem metodologia na sequência dos textos. É quase um diário caótico. Notas avulsas que contam o meu mundo naqueles dias. As descobertas curiosas que fiz da vida dos jovens escritores participantes da oficina. Tudo isso bordado pelo exercício da minha memória.
Por que, então? Porque foi um momento histórico, pelo menos para mim profissional do ramo. A quem interessaria? A você, roteirista, já que utilizo os relatos como espécie de revisão dos principais conceitos expostos neste livro.
E afinal para quê?
Desconfio que capture por meio da desordem dos acontecimentos descritos uma prazerosa relação entre dramaturgia e vida. Entre criar um roteiro e o dia a dia de um roteirista numa ilha com um prêmio Nobel de Literatura.
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VOANDO PARA CUBA
(TEXTO ESCRITO ENTRE MANAUS E PANAMÁ / 1987)
Em latim as palavras “inventar” e “descobrir” são sinônimos. Segundo Aristóteles a multiplicação desses dois verbos teria como resultado o ato de “recordar”.
Se não existem invenções ou descobertas, só recordação, criar se torna o efeito de um admirável exercício de memória. Um incansável esforço de lembrar.
Essa hipótese seria apenas curiosa se não fosse também verdadeira. Pois um dos efeitos mais perturbadores do ato de criar é aquele que nos dá a sensação de que não estamos descobrindo nada de novo, somente resgatando algo esquecido.
O talento da criação estaria na maneira que utilizamos para revelar ao outro esse algo, essa história, uma vida, saga ou percepção, que sempre existiu, mas que de alguma forma oculta foi esquecida pela humanidade. Ficou adormecida sem emocionar ninguém.
É exatamente o que espero encontrar nessa oficina: um desafio cuja missão é o ressuscitar da verdadeira história de uma enigmática mulher, Alma, que já vive num conto original de Gabriel García Márquez e que agora viverá num roteiro.
A investigação será realizada por vários profissionais da escrita, cada um deles levando a bagagem dos instintos, das emoções e das sensibilidades, mas acima de tudo a capacidade de imaginar.
Temo que seja fascinante criar opções para a história, compor personagens e se perder na imponderável dimensão do sonhar acordado. E como em todo sonhar, mesmo aquele de olhos abertos, mais uma vez vou aprender que não existem certezas e que nada é absoluto.
Vou viajar na defesa de meus delírios, depois voltar atrás, recriar, enfrentar Gabriel Garcia Márquez, os participantes, repensar novos detalhes e de repente surgirá a revelação: a trama só poderá correr num determinado fluxo narrativo e com as personagens atuando sob determinadas cargas dramáticas.
De repente todos estarão de acordo e o processo se completará.
O sonho se transforma em realidade. O roteiro é escrito. A minissérie rodada, assistida e a emoção transmitida aos espectadores. E toda a arriscada massa visionária vira verdade.
Enfim se chega a um resultado: a real transcrição de mentes viajando pelo irreal. Pela ficção e a paixão. Sem limites ou barreiras. A princípio tão próximas do caos, da loucura e ao final convictas e felizes por terem cumprido o milagre do resgate. Do ressuscitar uma história esquecida.
Clique aqui para fazer o download do diário completo.
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A série VIDA DE ROTEIRISTA é composta de artigos escritos pelos associados da ABRA – uma maneira de abrir espaço para a opinião do autor roteirista sobre diversas questões pertinentes à profissão. As opiniões expressas aqui são de responsabilidade do autor e podem não representar o posicionamento oficial da associação.
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