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Caricaturas de Gente – Subtipos do Caráter Humano

Patrão – Tempero caricatural do Patrão

Escolhemos iniciar uma nova seção de textos, buscando agora uma representação criativa das formas de expressão dos tipos de personalidade eneagramáticos.

Nessa representação, vamos tentar mostrar as formas caricaturais a que chegam os tipos em suas variedades de expressão psicológica ou instintual, no que diz respeito aos seus próprios modos de sobrevivência – autopreservação, vida íntima ou sexual e vida social.


Essas formas de expressão também dizem respeito às respectivas paixões motivadoras que conduzem os tipos a amostras peculiares de caráter, revelando um padrão cognitivo também muito característico (para conhecer melhor o perfil de cada tipo eneagramático, acesse os textos dos tipos publicados neste site).

Em síntese, vamos buscar uma representação artística livre e de interpretação pessoal sobre os subtipos de caráter, cujos temperamentos se revelarão de acordo com os modos de sobrevivência citados mais acima.

Tratamos por caricatura um modo de expressão não-saudável dos tipos de personalidade. Ou seja, a idéia é mostrar a expressão de inúmeros temperamentos em sua variedade tipológica, o que irá revelar a forma, digamos, mais “hipnotizada” do tipo; isto é, buscaremos revelar aquelas formas de ser que, consciente ou inconscientemente, colocam-se de costas para um comportamento mais sadio em face do verdadeiro trabalho interior pelo qual a consciência obtém um maior senso de ser no mundo, ou em relação à sua real capacidade de discernir a sua auto-imagem (ego) de sua essência.

Começamos então representando uma caricatura subtipológica do tipo Patrão (para saber mais sobre o tipo, acesse texto no site). Lendo o texto abaixo, talvez seja possível reconhecer no raio da lembrança do leitor algum tipo conhecido que em algum momento – ou na maioria deles se for muito “hipnotizado” para si próprio – esse padrão mental.

Alguns poderiam chamar de persona non grata, porque mostra seu modo de ser negativo embebido na Raiva, núcleo do qual o tipo Patrão compartilha com os demais tipos instintivos do Eneagrama (o Pacifista e o Perfeccionista).

Embora o pecado capital do Patrão seja a ‘luxúria’, esta não deve ser vista somente em sua acepção lingüística mais comum, conhecida como concupiscência (ou pornografia como se diz nos tempos modernos), mas também como toda ânsia pelos excessos afora o sexo, seja na forma que puder ser expressa (bebida, comida, jogo, etc).

Assim sendo, a ‘luxúria’ no texto abaixo pode não aparecer de forma clara, no entanto ela é a base motivadora da expressão do Patrão, seja na ânsia de controlar os outros, seja no modo de expressar seu próprio temperamento; ou ainda na maneira pela qual se excede em seus desejos e vontades (que podem ir do ódio extremo a amores carnais compulsivos).

Ei você: esperava encontrar palavras açucaradas neste espaço? Aqui não vai encontrar.

Não tô nem aí para a sua frustração, porque detesto a docilidade, as maneiras politicamente corretas de ser.

Realmente, não nasci para a melosidade. Nem sei se tem esta palavra e não me interessa saber. Agora se tem uma coisa aqui dentro que grita alto e está afiada igual espada de samurai, é a minha raiva – um fogo que insiste em chamuscar quem quer que se aproxime de mim e me contrarie.

Aliás, contrariar me lembra agir contra o meu modo de ver e controlar as coisas e, se você pensa em tomar conta da situação, taí uma coisa que não permito de jeito nenhum.

Este termo “controlador” só funciona comigo no comando; caso contrário não respeito muito às regras do jogo e exagero no desrespeito e na oposição.

Quer saber: faço tudo o que me dá na telha, e quando estou com raiva – e tem gente que passa sem ela, como é possível! – meu desejo é incendiar reinos, impérios e civilizações inteiras. Um genocídio pode atravessar a minha mente quando as labaredas estão queimando alto, mas aí é o extremo do extremo do extremo, plagiando o mano Caetano.

Aliás, mano nada. Não tenho mano. Meus irmãos tiveram tratamento diferenciado e eu fui posto no mundo para ralar e me virar sozinho. Por isso, palavrinhas adocicadas comigo só se eu estiver por cima de você, se é que me entende!

Bato na mesma tecla: tenho ódio de quem me contraria. E desde pequenininho isso vem acontecendo. Não era nem para nascer, e acabei surgindo neste mundo cão. Logo de cara deram uns tapas na minha bunda e disseram palavrinhas meigas: “Que menininho lindo!”.

Lindo o escambau! Um bichinho feio toda vida com um rio de sangue ardendo na cabeça vermelha pelada e vem me falar uma mentira deslavada dessas… Por isso não dá para confiar em ninguém. Desde o nascimento. Depois, então, piorou. A menos que se mostre forte igual a mim.

A sorte é que de tanto ralar sozinho, virei um touro, grande, robusto e destemido. Satisfação para mim é fazer os outros comerem na minha mão, obedecerem às minhas ordens, seguirem aquilo que eu acho certo, e aqui incluo, é claro, aquilo que é mais que certo eu querer: realizar os meus desejos “orgiásticos”.

Mas mesmo fazendo o que me dá na telha, parece que não me livro da insatisfação, desse ódio queimando as artérias que levam nitroglicerina para o meu cérebro. Eu disse cérebro?

Sei lá, tem gente que me diz que sou descerebrado, por isso fico ainda com mais raiva do mundo. Sinto ódio, isso sim. Para confiar em alguém, tenho que encostar o sujeito na parede e gritar com ele cuspindo na sua cara. Se ele tiver reação à altura, bem, daí posso pensar em começar a respeitá-lo, com sorte até confiar. O braço é de ferro. Sou assim mesmo. Se você não gostou, fica na sua senão o pau come. Esse é o meu lema e tenho dito.

Pacifista – Tempero Caricatural – Mania de Delicatessen

Olhei para fora. Não havia nada suspeito ou perigoso, mas minha sensação era desconfortável. Não que pudesse pensar sobre ela, a minha situação, mas podia senti-la em matizes digamos sensoriais.

Isso era possível. Não sei se para os outros, mas para mim era. Ser dominada pelas sensações sem ter que pensar sempre foi o meu forte. Até porque pensar dá uma canseira!


Por momentos, temi. Talvez ele estivesse curioso a fim de me espreitar e depois vir logo me abordando sobre o meu jeito, de mim se aproximando sorrateiro sem que eu fizesse tal escolha.

E aí sabe o que ia acontecer? Eu teria que falar com ele… E falar eu não gosto muito, viu. Gosto mesmo é de sentir-me aqui sozinha protegida em minha conchinha de sensações. Sinto que somente elas estão vivas e eu… Eu mesma não sei de mim, acredita? Ou melhor, sei sim. Se ele se atrever a vir falar comigo, faço que sim com a cabeça, concordando. Só que de tanto balançá-la, vou dizer que me cansei e recolher-me de volta feito uma tatuzinha que se enrola toda e endurece como uma pedrinha de rolar.

É que aqui dentro eu me reabasteço e faço o que eu bem entendo. Se bem que fazer não é muito comigo; sou preguiçosa, fico paradona e esquecida de mim mesma que mal vejo o tempo passar. Será que ele passa de trem? Do tempo, estou falando…

Momentos são momentos para se ter sensações, e eu gosto mesmo é disso. Ficar só e esquecer que tem coisas para serem feitas; assim, não torro energia à toa.

“Ei, você está aí? “Quem é?” “Sou eu, você sabe. Vem aqui fora”. “Vai embora! Eu não disse que viesse aqui, como se atreve?” “Só to a fim de conversar um pouco com você”. “Não estou, vai embora!”

Ele ficou ali na entrada me chamando por um tempo. Depois se cansou e foi embora. Desisti de ir lá fora ficar balançando a cabeça como tinha dito. Tinha me esquecido de dizer; também sou imprevisível. Claro que não fiquei remoendo a minha negativa, nem estava sequer um pouco arrependida. Dissimulei. Fingi tanto que me esqueci dele. Desliguei-me como faço sempre e também me esqueci de mim, acredita? Não que não gostasse dele, conhecia-o pouco, mas havia perigo no ar e acabei mergulhando nas minhas narcóticas sensações e, quando fui notar, horas se passaram.

A sensação maior que sentia neste exato momento era de… (pausa). Acredita que me esqueci o que estava falando? Está vendo como eu sou? Acho que até do meu corpo eu me esqueço ou me perco dentro dele. Sei lá. Embora não faça sentido eu não tê-lo quando todo mundo diz que os sentidos físicos vêm exatamente dele, ou será o contrário?

Seja como for, na minha abstração eles são-me tão presentes! Até arrisco a dizer que elas, minhas sensações, são egoístas, mas o que fazer quando se é tragada pelos sentidos e hipnotizada por eles? Sabe, não gosto muito de ficar exposta. Sinto o travo da inadequação. E essa sensação é a pior; não gosto dela.

Se me atrevo a pôr os pezinhos fora da minha casinha é para sentir o aroma do parque. Ou você pensou que eu não me encanto com as coisas? Ele não é atrevido como certa gente. Falo do parque, lógico. Mas o encanto passa tão rápido… Dura um exato instante que nem me dou conta. E se aparecer algum atrevido querendo conversar umas palavrinhas, eu não aceito. Você já é minha testemunha. Se eu empaco e retorno para dentro das minhas sensações é por que nelas está a minha razão de ser. Mas tenho dúvida se sou mesmo. Reparou como minha casinha é delicada como eu? Perfeccionista – Tempero Caricatural – Raro é o homem que deve

Nunca estive à toa. Na vida, estou dizendo. Se aquele Chico compôs A Banda, certamente não foi para mim. Andava neste dia quente de outono pelas ruas do bairro de quem me esperava ansiosamente. Seu nome: Célia Vasconcelos Lima. Gosto de pensar nela através de seu nome sonoro e também como minha futura esposa.


Entretanto, parei de inesperado. Minha atenção perdeu a imagem dela porque, de repente, outra emoção destronou o que sentia e tomou posse do trono dos meus olhos brilhantes e incrédulos.

À minha testa surgiram aqueles vincos no qual o paralelismo se fez geometria e meu dedo indicador se ergueu acusador apontando para o ar à procura de um culpado: “quem fora o doido que desferira sua fúria sobre aquelas pobres coitadas indefesas?” Por que elas tinham tombado e levado consigo fios de eletricidade e a alegria de moradores de casas próximas?

Feito água fervente subindo pelo bule de minha indignação senti aquela emoção que outros chamam de raiva, mas que eu denomino vontade de ver o mundo direito feito de pessoas seguindo a retidão e com responsabilidade de usufruir a natureza.

Estava claro quem era o culpado por aquele cenário de destruição que meus olhos brilhantes e duros enxergavam ali: o tal do aquecimento global, sobre o qual acostumara a ler e a ouvir sistematicamente de todos os canais vindos da mídia.

Mas como assim? Quem estava por trás dessa fúria da natureza era o homem! O bicho mais perigoso do planeta! O errante que despreza viver na ordem da harmonia das coisas! Esse é o cara! O (des)carado! Estava visível o erro mesmo que doesse na carne. Éramos também feitos com os mesmos elementos daquelas pobres árvores tombadas e daquele ar fétido de destruição que exalava naquela rua.

“Querido! Que bom que chegou! Estava tão ansiosa por te ver!” “Que faz aqui na rua, Celinha? Devia estar me esperando na sua casa. Não deve se misturar a essa imundície.” “Que está falando? Não está feliz em me ver?” “Feliz? Como, feliz? Não está vendo o resultado do erro diante de seus olhos?”

Oh! Aquela lividez no rosto quase de cera de minha namorada acabou comigo. A culpa era toda minha. Eu é que vivia na imundície do erro e estava com o punhal da vergonha atravessado nas costas.

Não pense, entretanto, que saí dando beijos de arrependimento na minha amada. Dei mesmo outros “corretivos” porque ela precisava mais de minha bondade em mostrar-lhe o correto – e o correto estava em lhe dizer que eu zelava pelo seu bem e que ela devia ouvir-me sem contestar sobre o desastre que estávamos sendo vítimas em sua rua calma e, agora, (des)arborizada.

“Mas querido! Eu não fiz nada de errado. Não poluo, não fumo, não digo palavrões, nem recusei nenhum tratado de Kioto, então por quê? Eu só corri em sua direção quando vi você perplexo diante dessas árvores caídas…” “O mundo, Celinha, está perdido! As pessoas não sabem mais o que é direito, o que é certo; só pensam em seus estúpidos privados! Você é pura, devia ficar em casa, quietinha, me esperando. Sabia que eu vinha e então por que saiu correndo assim? Não, você está errada. E ainda mais sair com essa roupa minúscula! A ruína está completa desse jeito. A física e a moral. Oh! Mundo perdido e (des)assistido de regras!”

A culpa voltou e eu a abracei com força, apertando o seu corpo junto ao meu e sentindo sua pele macia. Meu braço comprido repleto de veias longas e esverdeadas ganhou a extensão do seu ombro delicado e começamos a andar por entre a morbidez que se tornara aquela rua que um dia fora saudável.

Senti o meu indicador, grande serviçal das minhas lides acusatórias, carimbar o braço da minha doce Celinha, que, a esta altura, se aquietara como que ciente de que o erro traz de carona a degradação moral.

Efusivamente, eu prossegui moralizando e vertendo minha ácida crítica sobre o desmoralizado mundo dos homens que insistem no erro à custa de outros erros. Errar, errar e errar. Quanto despautério! Para que errar? Só para se sentir culpado? Case então com a culpa e vivam infelizes por toda a vida, ora! E não pense que estou sendo contraditório, pois a culpa para mim é só uma promotora de juízos!

Assustei-me mesmo foi quando chegamos ao portão da casa de Celinha e ela me olhando com um ar brejeiro disse-me assim de repente: “Querido, melhor desenrugar sua testa porque meu pai não gosta de rival!”

Dador – Tempero Caricatural – Dama de privilégios

Não sei por que não me ouvem mais. Será que vou ter de me fazer de xodó para de novo recuperar atenção e cuidado, que são meus por direito?

Ah, eles dizem que ajo como bebê, como uma ta-ti-bi-ta-te (dita as sílabas uma a uma fazendo-se como), mas esquecem que eu ralo por eles. Dou partes de mim mesma para que não passem privações e dificuldades.

Deviam me chamar de dadivosa. Mas, ao contrário, ficam me deixando nervosa e eu odeio quando me fazem isto!

“Menina, você taí? Ei, menina, onde você se meteu?”

Mamãe tinha chegado e meu pai devia vir atrás, para variar, com a sacola repleta de laranjas Bahia da feira. Não estava a fim de levar papo com nenhum dos dois, muito menos olhar para eles que tinham me irritado profundamente. Minha vontade mesmo era destituir os dois do comando de casa para fazer o que eu quisesse.

“Ei, Odete: pare de tratar Solange como uma menina. Ela já tem dezessete anos!” “Mas não parece. Somos obrigados a atender a todos os seus caprichos. Senão o fazemos, ela vira bicho”.

Fiquei me segurando atrás da porta para não gritar. Só Deus sabe o quanto sofri neste instante. Meu fino lábio também, porque o mordi com os dentões da frente até ele sangrar. Estavam falando de mim! Como ousam questionar o que quero? Sabe disco voador? É isto que vou fazer com os pratos do armário!

“Ela não sabe o que quer, Petrônio”. “Mas que sabe querer, isto ela sabe”.

Vou explodir essa cozinha com meu míssil. Ousam negar que eu tenha vontade de querer. Aquilo que quero tanto… A maior aventura que uma garota alucinada por esportes radicais poderia querer…

“Que loucura é essa aí de saltar de uma ponte? Isto não é esporte, mas suicídio!” “Ela só fala nisso, Petrônio. Bungee alguma coisa…”

Dessa vez, eu gritei aguda e ensurdecedoramente e, logo depois, percebi que eles pararam de falar de mim na cozinha. Acho que agora a carne fina do meu lábio inferior tinha virado um filé prestes a cair. Que raiva estava sentindo, mas precisava me segurar senão os discos voadores viriam nos abduzir de verdade. Até que não seria nada mal…. Um salto radicalíssimo da Via Láctea com a minha desparaquedada vontade!

“E ainda por cima ela está saindo com um camarada chamado Tigrão. É possível?” “Como você sabe, Petrônio?” “Ouvi ela falando ao telefone com o sujeito”.

Não agüentei mais. Arranquei o bife ensangüentado que tinha pendurado no lábio e o joguei longe. Claro que eu gritei mais uma vez, estridentemente como sempre fazia, só que agora era de dor mesmo. Como num salto de bungee jump, caí na frente dos meus pais, que ficaram perplexos com minha agilidade de tigresa.

“Eu amo esse cara. Estão me entendendo! Vocês não têm o direito de se intrometer em minha vida!” “Mas você pode exigir toda a nossa atenção, não é queridinha do papai e da mamãe?”

Comecei a chorar. A raiva que sentia bombava o meu coração até eu senti-lo na boca. Meu corpo estava quente, fervendo, cozinhando o meu feijão. Que adianta ser dadivosa, se nem meus pais sabem reconhecer o meu sacrifício? Sempre fora fiel aos meus princípios, a mim mesma, àquilo que achava justo. E querer ter o privilégio de ser amada é o primeiro sinal de justiça por me dar tanto, tanto, tanto… Fazia tudo por eles e agora eles estavam querendo tomar conta de minha vida afetiva. Justo com o Tigrão, a quem eu jurei fidelidade. Até o próximo salto, claro. Depois, é só sentir um novo friozinho na barriga…

Papai e mamãe, definitivamente, não sabem nem entendem a linguagem de seu bebê. Ta-ti-bi-ta-te. (Disse isso com todas as letras para eles e fui. Para mais um salto no escuro.)

Privilégio meu, querer.

Desempenhador – Tempero Caricatural – Carapaças e Carapuças

Ele acabara de chegar. Entrou em casa segurando um paletó escuro de fibra. No rosto, uma moldura lustrada, diria, escorregadia. Eu nunca sabia o que se escondia por detrás daquela pele lustrosa e encerada que, se não era de marfim, parecia.


“Conseguiu?” “Conseguiu o quê? O que quer saber?”

Ele tinha olhos duros e sua língua sempre pronta a disparar a menor aproximação. Detestava que eu chegasse perto demais e visse que ele escondia algo difícil de digerir. Quando se sentia ameaçado, atacava de imediato, com cobras e lagartos.

“Bruxa! Medéia! Não quero você em cima de mim, já disse. Sei muito bem como me virar”.

Nada podia dizer. Ele pensava que sabia uma coisa que não sabia. Mas não diria que fosse um coitado. Nunca conheci a sua intimidade e, aposto, que nem ele. Vivia se escondendo dele próprio num jogo de carapaças e carapuças. Quando pensava que estava por ver o seu rosto verdadeiro, acontecia de ver uma nova faceta emoldurada por um de seus inúmeros semblantes, com os quais disfarçava a sua incapacidade de localizar onde estava de fato o seu rosto, aquele mesmo que trouxera ao nascer.

“Quer saber como foi a reunião? Pois eu digo: foi o Ó! Aqueles caras são um Ó! Não agüento mais!”

Se há uma qualidade nele, digo que é a sua habilidade de despistar. Estava claro que eu queria saber da reunião para a qual ele fora convidado, mas, ainda mais, sobre como ele estava se sentindo diante do encontro fracassado. E não que eu fosse uma bruxa mesmo como ele havia me chamado, é que o aborrecimento estava estampado naquele rosto quase sem cor agora, pois estava camaleonicamente tomando a forma de algo ainda não definido.


“Alegaram o que dessa vez?”.

“O que você acha? Que mais poderia sair daquelas bocas?”.

“Não sei, talvez tenham uma resposta padrão”.

Ele pegou um copo alto no bar, encheu de uísque até a metade e bebeu de uma vez. Depois, olhou para mim com os olhos faiscantes e sorriu um riso denunciador.


“Vamos viajar. Tenho dinheiro guardado.”

“Não pode estar falando sério?”

“Por que não?”

“Porque… Porque você está desempregado!”

Não devia ter dito tal coisa, pois não consegui sustentar o olhar furioso que ele me desferiu. Era como se eu tivesse lhe apontado uma flecha na direção de sua vaidosa honra de inatingível homem que jamais perde uma batalha.


“Não sei por que fui me casar com você”.

Gelei. Não suportava quando ele vestia essa máscara: esta mesmo que me deixava encolhida no sofá sentindo-me uma infeliz errante só atrapalhando o homem perfeito, que jamais erra.

“Se não quer viajar, fique aí. Vou sozinho”.

Ele se levantou e saiu. Deixou o paletó encostado na banqueta do bar. Coisa rara de acontecer. Acho que foi para que eu reparasse nele e visse uma carta borrada de batom saindo do bolso de cima.

Na ponta dos pés, eu me aproximei para pegá-la. Ele, que sempre soubera se esquivar de mulheres interesseiras, agora, que estava desempregado, arranjara uma amante?

“Não mexa nisso!”.

Novamente, gelei. E tal como gelo, endureci o corpo e não dei mais um passo. Senti o bafo de uísque ganhar as minhas narinas e um ar quente foi descongelando os músculos de meu rosto.

“Eu sabia! Eu tinha certeza! Você é uma bisbilhoteira e quer saber coisas demais. Está despedida. Ouviu bem? Despedida!”

Uma esposa-secretária despedida era o que eu era agora. Que mais importava. Descobrira uma nova carapuça dele. Então, levaria tudo comigo. Na memória, uma série de rostos indefinidos que aprendi ser de uma mesma pessoa.

Faces lustrosas e escorregadias que se trocavam uma pela outra sem nunca revelar a matriz única, o negativo que guardava a carapaça das carapuças, ali talvez onde fosse possível enxergar a imagem de quem era aquele que se encobria de várias camadas de película de cera tal como um clown que se esquecera do seu verdadeiro rosto.

Camaleão arisco. Este foi o meu ex-marido. Um pleonasmo talvez. Se foi, é claro que é ex. Mas ele foi tantas coisas que me deixou confusa. Sempre gostou de ser reconhecido.

No plural, quero dizer, porque em se tratando dele, que veste carapaças e carapuças, não há como pensar diferente. Espero que arranje uma nova secretária. E que vire uma esposa-chefe e arranque todas as suas máscaras.

De uma vez só. E que ele não fique nem com um instantezinho para cobrir as suas vergonhas. Será o fogo justo para aquecer o prato frio de minha vingança. Sim, também sou uma ex.

Devaneadora – Tempero Caricatural- Sonhos de Diva

Diva era o seu nome. Linda, faceira, jeitosa e com fantásticas ancas. Os homens ficavam enfeitiçados com aquele ‘patrimônio’ dela (que desejavam ardentemente), mas ela não estava nem aí para eles, ou melhor, estava, sim.

Claro que estava. Tanto é verdade que vários deles passavam por sua não menos fantástica imaginação, que, como num passe de mágica, se projetava em sua vida feito uma ânsia insaciável que queria concretizar-se. Nos seus sonhos, o objeto amado aparecia e fazia tudo com ela, tudo aquilo que ousava imaginar dentro dela, naturalmente usando suas fantásticas ancas…

Assim era Diva. Acordava suspirando um novo “gato” como se fosse possível detalhá-lo nas partes mais convincentes de seu desejo: loiro, olhos verdes, ombros largos, espadaúdo, bem-dotado, musculoso, cicatriz no queixo, verruguinha de nascença na bunda… (bunda, não, ancas) para, em outro devaneio, sentir a presença de outro bicho… um “ratão”… de cauda enorme, tez morena, nariz adunco, sobrancelhas espessas, bigodão, cabelos gosmentos, roupas rotas e reclamando que não conseguia sair das dívidas.

Homens para ela eram feitos de pó mágico de pirlimpimpim, os quais ganhavam forma e “vida” enevoando-se das raias de sua imaginação pródiga, para o aconchego de sua forma dadivosa de ser devaneadora.

Apesar de sozinha com sua imaginação, Diva era ainda uma mulher que atraía e repelia ao mesmo tempo. Isto é, ao mesmo tempo em que suas ancas chamavam a atenção de incautos rapazes atrás de uma bela diversão vislumbrando, digamos, uma troca de dotes, a moça sonhadora tornava-se inalcançável para eles, e, por mais que insistissem, ficavam apenas com o gostinho frustrado de ver aquelas benditas ancas desaparecem de suas mãos como se fossem matéria etérica.

Diva, a adormecida!

Ela lembrava coisas do seu passado e, apesar de ter apenas 38 anos, guardara emoções mil fora de suas ancas, mas isto foi desde quando elas cresceram e se tornaram a beleza mais arredondada da terra!

Pobre homens…

Diva era muita generosa, diriam seus amigos da infância e adolescência. Naquela época ela se permitia a devanear com os seios, com os braços, boca, ancas… tudo que tinha direito e obrigação pelos seus sentidos… depois… mudou… virou moça sonhadora.

Não sabia por quê. Mudara, apenas, e não sabia que passara a idealizar seus bem-amados, pois somente se dava conta da materialização de seus ardentes anseios quando os via nos seus pés… ou melhor, suspirando tremeluzentemente atrás de suas ancas…

Diva, hoje, virou titia, mas conserva a aura da silhueta jovem e insinuante, que hipnotiza homens saídos de propaganda de perfumes, esportistas, cultivadores da beleza, do charme, daquele homem especial com sapatos de cromo bebendo uísque…

Ela passa dias escrevendo suas fantasias de amor ao grande homem de sua vida. “Ele é especial, mas não especial: super-especial, que eu não tenho palavras!”.

Diva desejará sempre o príncipe inalcançável, sua beleza plástica, a imagem que permanece intocada, o retrato de Doris Day. Ela espera e sempre irá esperá-lo, pois um dia a matéria será bruta de novo, como no passado em que usava seus desejos, ossos, músculos… e ancas… claro!

“Quem viver verá!”, exclamava para si mesma.

Estava tão esquecida em seus devaneios que não percebeu a presença de uma menina linda e graciosa que se aproximou dela e disse:

“Titia! A senhora não vem comer?” A fantasia rompida por uma boa causa. “Que foi, querida? O meu príncipe… ele chegou?”

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